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Breve relato histórico acerca da investigação de Russell sobre Leibniz

Mariana Cruz

Ao ser convidado, em 1899, para ministrar aulas sobre Leibniz como professor no Trinity College, em Cambridge, Bertrand Russell iniciou um minucioso estudo sobre o sistema leibniziano que o fez perceber a fragilidade da estrutura sobre a qual construíra sua própria visão a respeito de tal filosofia.

Sua impressão superficial de um dos principais livros de Leibniz, Monadologia,erasimilar à de outros comentadores quea consideravam um tratado que, apesar de coerente, estava repleto de teorias arbitrárias. Foi quando se deparou com o Discurso de Metafísica e com a Correspondência com Arnauld. Tais leituras revelaram as partes mais obscuras do sistema leibniziano e o fizeram enxergar o que de fato estava construído sobre os alicerces – agora sólidos – de seu edifício filosófico. Constatou que tal construção aparentemente complexa – como sua teoria das mônadas – era sustentada por poucas e consistentes premissas.

De posse dessa nova visão, resolveu transmiti-la a outros estudiosos de Leibniz ainda presos à ideia de que alguns de seus escritos não passavam de concepções fantásticas acerca do mundo. Daí ter se imposto a tarefa de escrever um livro no qual não só expusesse sua visão sobre tal sistema como também mostrasse que “o valor de Leibniz como filósofo é muito maior do que aquele que resultaria das exposições costumeiras” (RUSSELL, 2005, p. xxii).

Ainda na parte inicial do livro A Filosofia de Leibniz, Russell chama a atenção para o fato de que todo sistema estudado, por mais sólido que possa parecer, não está livre de apresentar inconsistências em determinadas partes. Daí ele considerar mais importante examinar o processo de desenvolvimento do pensamento do autor – e excluir suas possíveis inconsistências – do que julgar se sua opinião está correta ou não.

Em relação ao trabalho dos comentadores sobre a parte histórica de Leibniz, Russell reconhece ter aprendido com Erdmann “mais do que com qualquer outro comentário escrito na ignorância das cartas de Arnauld” (2005, p. xxi). A respeito dos escritos não publicados que vieram à tona, o lógico diz não lhes ter sido dada a devida importância pelos comentadores tradicionais, que permaneceram com uma visão cristalizada e resistentes a novas interpretações.

As duas filosofias de Leibniz

O reconhecimento tardio do efetivo valor da filosofia de Leibniz deve-se, segundo Russell, à negligência por parte dos editores que, por quase dois séculos, não se interessaram em publicar nenhum dos textos inéditos deixados por ele. Russell deixa a modéstia de lado ao se assumir como o primeiro a dar real importância a um desses escritos – a Correspondência com Arnauld –, publicado apenas no século XIX e que, nas suas palavras, “contém uma parte de sua mais profunda filosofia” (RUSSELL, 1945, p. 591).

A tese principal do livro de Russell, de que a filosofia de Leibniz é quase toda derivada de sua lógica sujeito-predicado, foi um ano mais tarde endossada por Couturat.

Russell considera que, nas cartas trocadas com Arnauld, Leibniz articula sua filosofia em sua forma lógica (“Leibniz was a firm believer in the importance of logic, not only in its own sphere, but as the basis of metaphysics” RUSSELL, 1945, p. 591)., expondo inclusive para seu interlocutor a tese de que a noção individual de cada pessoa envolve tudo o que lhe acontecerá. Arnauld, por sua vez, coloca-se peremptoriamente contra tal visão, dizendo que tais pensamentos têm

tantas coisas que me assustam e que quase todos os homens, se não me engano, acharão tão chocantes que não vejo que utilidade poderia ter um escritor que aparentemente será rejeitado por todo mundo. Darei por exemplo apenas o que ele diz no artigo 13 ‘que a noção individual de cada pessoa encerra de uma vez por todas tudo aquilo que lhe acontecerá no porvir’ (LEIBNIZ, s. d., p. 5).

Arnauld nega-se a compartilhar tais pensamentos, pois, segundo ele, não lhe parecem “dignos de Deus.” (Idem, p. 49). Além disso, diz não compreender como poderia Deus, apesar de ser livre para criar, ter optado por criar um mundo onde tudo acontece por uma necessidade fatal.

Curley não concorda com a teoria russelliana de que Leibniz tenha evitado publicar alguns de seus escritos como forma de esconder seus verdadeiros pensamentos e não ser rejeitado pelo público. Utiliza, assim, a própria Teodiceia para comprovar sua tese, uma vez que, segundo ele “ninguém poderia compor um trabalho tão longo (…) sem uma convicção muito forte da verdade e da importância do que ele estava dizendo” (CURLEY, 1994, p.194). Ainda de acordo com Curley, Leibniz pode ser considerado um “chronic non-publisher” (Idem, p. 195), pois são diversos os motivos que fizeram com que ele não publicasse muitos de seus trabalhos. A Correspondência com Arnauld, por exemplo, ele diz não ter sido publicada provavelmente por “distração por outros interesses.”(Idem, p. 196).

A crítica de Arnauld alertou Leibniz sobre os possíveis problemas com que ele poderia se deparar caso tornasse pública sua visão. Russell considera que, por tal motivo, ele manteve em segredo sua teoria acerca da noção completa das substâncias individuais. De acordo com o lógico britânico, tal fato, somado ao desejo de Leibniz de agradar à nobreza e persuadir os leitores com uma filosofia mais acessível, foram os motivos que fizeram com que deixasse de publicar uma obra definitiva que comportasse, de fato, todo seu sistema.

O britânico enumera as obras que Leibniz escreveu visando obter um reconhecimento imediato, como a Teodiceia (considerada por Russell a base teológica de seu otimismo), Princípios da natureza e da graça e Novos ensaios sobre o entendimento humano. Acusa Leibniz de ter se deixado influenciar pela opinião de intelectuais de sua época sobre como proceder com seu sistema filosófico – como ocorre em sua Correspondência com Arnauld. E diz que por tais motivos ele deixou de lado sua filosofia mais genuína, baseada em argumentos válidos, em prol de uma filosofia de fácil adesão. De acordo com Russell, a filosofia profunda e perspicaz do autor da Monadologia está majoritariamente nos pequenos artigos descobertos entre seus manuscritos e publicados pela primeira vez somente em fins do século XIX por estudiosos como Erdmann e Gerhardt. A despeito de considerar tais atitudes de Leibniz intelectualmente desonestas, Russell não deixa de tê-lo como um dos mais brilhantes intelectuais de todos os tempos.

Russell considera que a filosofia madura de Leibniz tem início em 1686, com a Correspondência com Arnauld, pois é onde, segundo o lógico, Leibniz faz sua melhor análise da noção de substância individual. Foi também nesse ano que ele completou de fato seu sistema, o qual manteve até o final de sua vida.

Por julgar que as teorias de Leibniz apresentam tal duplicidade, Russell considera de suma importância o papel do comentador nesse contexto. Ressalta que aquele que se impõe essa tarefa deve se empenhar em descobrir qual o sistema que o filósofo deveria ter escrito caso não estivesse mais preocupado em agradar aos nobres do que em ser sincero intelectualmente. Para tanto, o comentador deve tentar descobrir onde se inicia a cadeia lógica do sistema leibniziano e quais escritos a compõem. E foi justamente o que Russell pretendeu fazer ao incumbir-se da função de descobrir e separar, no referido sistema, o que realmente é sustentado logicamente daquilo que tem a mera função de ser agradável aos olhos de quem lê. Para tanto, concentrou-se na filosofia mais madura de Leibniz, que, segundo ele, além de fundamentar logicamente o sistema leibniziano, aponta as falhas contidas em sua filosofia mais superficial.

Referências

CURLEY, E. M. The Root of Contingency (1972). In: LEIBNIZ, G. W. Critical Assessments, v. I. Londres & Nova York: Routledge, 1994, p. 187-207.

LEIBNIZ, G. W. Correspondência com Arnauld. Trad. Viviane de Castilho. s. d. (tradução não comercial. Digitado).

RUSSELL, B. A Critical Exposition of the Philosophy of Leibniz. Taylor & Francis e-Library, 2005.

______. A filosofia de Leibniz. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.

Para saber mais sobre o tema, leia O Leibniz de Deleuze – o filósofo do grito.

Publicado em 9 de abril de 2013

Publicado em 09 de abril de 2013

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