A comunicação entre crianças surdas filhas de pais ouvintes

Luciane de Oliveira

Licenciatura em Letras - Libras (UFPB)

Eduardo Beltrão de Lucena Córdula

Doutorando do Prodema (UFPB)

As relações interpessoais ocorrem de forma salutar devido ao contato social nas diversas atividades humanas. Porém nem sempre essa máxima ocorre, porque alguns sujeitos são portadores de deficiências físicas e, no caso dos surdos, da comunicação que permite rapidamente uma relação interpessoal.

A estrutura das sociedades, desde os seus primórdios, sempre inabilitou os portadores de deficiência, marginalizando-os e privando-os de liberdade. Essas pessoas, sem respeito, sem atendimento, sem direitos, sempre foram alvo de atitudes preconceituosas e ações impiedosas (Maciel, 2000, p. 51).

O surdo possui como sua primeira língua a língua de sinais, essa que é natural, pois evolui como parte de um grupo do povo surdo (Gesser, 2009, p. 12). Assim, segundo a autora, a língua de sinais tem todas as características linguísticas de qualquer língua humana natural. É necessário que nós, indivíduos de uma cultura de língua oral, entendamos que o canal comunicativo diferente (visual-gestual) que o surdo usa para se comunicar não anula a existência de uma língua tão natural, complexa e genuína como é a língua de sinais (Gesser, 2009, p. 22). Os surdos foram privados de se comunicar em sua língua natural durante muitos séculos. Vários estudos têm apontado a difícil relação dos surdos com a língua oral majoritária e com a sociedade ouvinte. Dentre algumas narrativas históricas, consta que a sinalização era vista como um “código secreto”, mesmo entre os surdos, pois era usada às escondidas, por causa da sua proibição. Na Idade Média, na Itália, os monges beneditinos empregavam uma forma secreta de sinais para se comunicar entre si, a fim de não violar o rígido voto de silêncio (Lane, 1984; Sacks, 1990).

Na perspectiva de tantos outros, a língua era vista como algo exótico, obsceno e extremamente agressivo, já que o surdo expunha demais o corpo ao sinalizar (Lane, 1984; Sacks, 1990; Byington, 1996).

Várias implicações sociais, políticas, educacionais, psicológicas e linguísticas decorrem dessa proibição. Porém o que a história mostra é que a língua de sinais, diferentemente da língua da maioria das línguas minoritárias, não morreu e não morrerá, porque enquanto tivermos dois surdos compartilhando o mesmo espaço físico haverá sinais (Gesser, 2009).

Portanto, a principal dificuldade relatada pelas famílias no convívio com a criança surda está relacionada à comunicação (Oliveira et al., 2004). As famílias apontam que barreiras na comunicação com seus filhos acabam acarretando outros problemas, tais como dificuldade de compreender as necessidades e os problemas na socialização da criança, além do aparecimento de comportamentos agressivos por parte do filho (Oliveira et al., 2004).

Linguisticamente, afirma-se que a língua de sinais é uma língua completa, porque apresenta todas as características que estão presentes em outras línguas naturais (Chiella, 2007). Segundo Gesser (2009), todos os seres vivos podem ter um sistema de comunicação. Língua nativa é expressa para Johnson (1997, p. 136) como linguagem, sendo

o conjunto de palavras e regras de sintaxe e gramática que determinam como palavras devem ser usadas a fim de transmitir um dado significado. A linguagem é fundamental porque é através dela que conseguimos criar o significado da experiência, dos pensamentos, dos sentimentos, da aparência e do comportamento humanos.

A interação e as relações interpessoais: surdos convivendo com ouvintes no ambiente familiar

Atualmente, com os processos de inclusão no Brasil (Lei n. 13.146/15), “visando resgatar o respeito humano e a dignidade, no sentido de possibilitar o pleno desenvolvimento e o acesso a todos os recursos da sociedade por parte desse segmento” (Maciel, 2000, p. 51) e a adaptação de algumas famílias à comunicação no ambiente familiar por meio da Libras – Língua Brasileira de Sinais, adotando-a como segunda língua e em alguns casos com o acréscimo ainda da leitura labial pela pessoa surda, a comunicação se estabelece para o pleno desenvolvimento do sujeito (social, educacional, afetivo, cognitivo e psicológico) (Figura 1), pelas inter-relações que passam a se estabelecer (Oliveira et al., 2004; Chiella, 2007).

A socialização é um processo interativo necessário para o desenvolvimento, através do qual a criança satisfaz suas necessidades e assimila a cultura ao tempo que, reciprocamente, a sociedade se perpetua e desenvolve. Esse processo inicia-se com o nascimento e, embora sujeito a mudanças, permanece ao longo de todo o ciclo vital (Borsa, 2007, p. 1).

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Figura 1: Implicações do desenvolvimento da comunicação para a criança na sociedade, a partir do ambiente familiar.
Fonte: Os autores (2017).

Segundo Fernandes (2003, p. 190), a Libras, sendo uma língua natural, com organização gramatical com as mesmas funções da língua oral, é produzida por gestos (sinais) e por recursos espaciais e sua percepção é inteiramente visual. Para Castro (1999), essa língua é o caminho pelo qual o surdo pode desenvolver suas necessidades linguísticas, já que a surdez pode levar a criança a um isolamento dentro da própria família. Essa falta de comunicação no convívio familiar priva o indivíduo com deficiência de situações de diálogo, o que leva a expressar comportamentos tidos como agressivos ou inadequados (Chiella, 2007).

Sendo assim, a interação familiar é de fundamental importância na constituição social do sujeito. A família é, como afirma Guarinello e Lacerda (2007), o primeiro local onde as capacidades das crianças são desenvolvidas, ao mesmo tempo que, como referem Negreli e Marcon (2006), é no espaço familiar que os valores e as crenças são transmitidos de geração em geração, de modo que o empreendimento conjunto entre a criança e o adulto é determinante. Diante dessas considerações, é importante destacar que o modo como a criança é tratada no contexto familiar terá grande influência sobre a imagem que terá de si mesma (Stelling, 1999).

As interações dos surdos com os ouvintes no ambiente escolar através da Libras

A escola, na vida de todo o educando, favorece o pleno desenvolvimento do sujeito, por meio do seu tripé aspectos constitucionais, vínculos familiares e ambiente escolar (Borsa, 2007) (Figura 2). Portanto, ela aparece como elemento facilitador no enfrentamento das dificuldades de comunicação, pois é nela que as famílias podem ter acesso à aprendizagem da Libras fora do ambiente familiar (Oliveira et al., 2004).

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Figura 2: Tripé do sistema socioeducativo na formação do cidadão ativo e pleno na comunicação para inter-relações sociais.
Fonte: Baseado em Borsa (2007); os autores (2016).

É na interação com a escola que a família pode encontrar apoio que a impulsione em direção à qualidade de vida da criança surda e ao desenvolvimento saudável das suas inter-relações (Oliveira et al., 2004). Diferentemente da criança ouvinte, que desde cedo tem contato com a linguagem oral, a criança surda está inserida num contexto no qual as interações linguísticas não são compartilhadas, considerando que “95% são filhas de pais ouvintes, os quais, em geral, desconhecem ou rejeitam a língua de sinais” (Skliar, 1997, p. 132). A falta de contato com adultos que compartilhem uma língua pode significar uma desvantagem no desenvolvimento educacional da criança surda (Quadros; Cruz, 2011).

Ao contrário, crianças surdas de pais ouvintes que têm acesso tardio a uma língua estruturada normalmente têm problema de memória. A memória de curta duração (ou memória de trabalho) é afetada pelo atraso na aquisição da linguagem (Emmorey, 2002).

Portanto, a escola pode buscar amparo na Lei da Inclusão (Brasil, 2015), trazer o intérprete e o professor de Libras para que a criança tenha contato essa língua, passando a adotá-la como sua primeira língua (L1) e, ao longo do tempo, aprender o português como sua segunda língua materna (L2). Por essa razão, a família e a sociedade devem estar unidas à escola para que a inclusão aconteça e todas as necessidades dos educandos sejam plenamente atendidas (Barbosa, 2004).

O papel da família na educação do surdo

O fato de os pais também serem surdos ou serem ouvintes tem repercussões igualmente importantes na educação das crianças. Para Coll et al. (2004, p. 174), a

porcentagem de surdezes hereditárias situa-se em torno de 30 a 50%, mas não é fácil determinar isso. A principal razão está em que a maioria das surdezes de origem genética tem caráter recessivo. Isso supõe que, em muitos casos, a perda auditiva das crianças surdas com pais ouvintes é genética.

Deve-se levar em conta que apenas 10% das pessoas surdas têm pais surdos (Roth; Júnior, 2010, p. 17). A atitude dos pais diante da surdez de seu filho terá influência considerável na sua socialização e formação educativa. Há pais que tentam negar sua existência e, consequentemente, tratam seu filho como se fosse ouvinte. Outros, ao contrário, desenvolvem atitude de superproteção (Bernardino, 2009). Em uma posição intermediária, mais positiva, estão os pais que aceitam as consequências da surdez, criam um ambiente descontraído de comunicação e se dispõem a aprender e utilizar com seu filho o tipo de comunicação mais enriquecedor (Brito et al., 1999).

Mais de 90% das crianças surdas que possuem pais ouvintes não conhecem a língua de sinais (Eleweke; Roda, 2000 apud Santos, 2009, p. 22); isso é um dado preocupante, pois com isso essas crianças normalmente não têm exposição a uma língua efetiva na infância; em decorrência dessa carência, surgem inúmeros problemas socioeducativos e psicocognitivos ao longo de sua vida. Em muitos casos, os pais não querem que seus filhos aprendam a sinalizar por causa da falsa ideia de que, se aprenderem Libras, não serão capazes de adquirir fala (Emmorey, 2002; Goldin-Meadow, 2003; Mayberry; Eichen, 1991).

Quando se aborda o desenvolvimento comunicativo e linguístico da criança surda, pode-se explicar que os ambientes linguísticos em que elas desenvolvem são muito variados; por isso, os processos de socialização linguística são marcadamente diferentes. As crianças surdas cujos pais usam sinais adquirem de forma espontânea a língua utilizada no ambiente familiar (Coll et al., 2004). Crianças educadas em um ambiente linguístico acessivelmente rico têm plenas oportunidades de interação com pais e irmãos, o que não ocorre com a maioria das crianças surdas de pais ouvintes (Coll et al., 2004).

Nesse sentido, é importante destacar o papel da família, pois é por ela que o alicerce da personalidade subjetiva é construído, de forma que o desenvolvimento da criança é, em grande parte, de sua responsabilidade (Barbosa, 2004; Jesus; Domingues, 2005). Família, sociedade e escola, portanto, formam a base de proteção e inclusão do sujeito na sociedade e da superação de suas dificuldades e necessidades para o pleno desenvolvimento como ser humano e como cidadão (Figura 3).

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Figura 3: Base, proteção e formação do sujeito social e historicamente constituído.
Fonte: Os autores (2016).

Considerações finais

Acreditamos que todos esses estereótipos e implicações que a sociedade vê na pessoa surda não estão no fato da falta da comunicação, ou seja, na dificuldade de compreendê-los, mas na falta de informação sobre a língua de sinais, na falta de interesse em socializar essa língua ou mesmo na própria resistência à aceitação dos sujeitos surdos, que, por terem uma linguagem própria, passam também a possuir cultura e identidade social próprias.

É papel da família identificar o quanto antes a condição de surdez na criança, para que se possa buscar a melhor forma de comunicação e de fortalecimento das inter-relações e, ao mesmo tempo, buscar, pela Libras, implantar o bilinguismo para que todos possam se comunicar plenamente e desenvolver assim a criança e prepará-la para ingressar no âmbito escolar. E é dever do Estado em garantir a assistência, o acesso e a permanência na escola do portador de surdez e das demais deficiências, para que todos possam ter seu pleno desenvolvimento escolar.

Sendo assim, com família, sociedade, Estado e escola unidos, as desigualdades tornam-se tênues e, ao longo do tempo, todos tenderão a ser vistos de forma igualitária, como sujeitos históricos e socialmente constituídos, agregando luminescência à humanidade.

Referências

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Publicado em 07 de fevereiro de 2017

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