Uma conversa sobre identidade: a partir dos estudos dos cotidianos e literatura

Luiz Carlos de Sá Campos

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação (Unesa), pesquisador (Pibic/Unesa e Faperj), professor de Língua Portuguesa e Literatura na rede estadual do Rio de Janeiro e universitário (Unesa)

A forma de escrita aglutinada é utilizada por Nilda Alves e pelos cotidianistas com o propósito de solucionar e se esquivar destes conceitos que a ciência moderna dicotomizou em pares, mas que são opostos entre si.

Esta comunicação é resultado de um primeiro olhar do projeto de doutorado sobre o objeto definido de pesquisa, que parte das pesquisas nos/dos/com os cotidianos escolares, e que requer “mergulhar” no nosso próprio cotidiano. A escrita de “cotidianos” não se refere à marca de número da palavra como substantivo ou adjetivo, mas assinala a diferenciação da proposta de Michel de Certeau, no seu livro A invenção do Cotidiano, que a utiliza singularizada, pois para nós, cotidianistas, o cotidiano se dá em rede. Este artigo é o primeiro resultado do trabalho desenvolvido na sala de aula em três turmas do 2º ano do Ensino Médio da rede pública da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro. Com base na leitura de alguns contos de Machado de Assis, foram discutidas as ideias de raça, etnia e identidade, com base no entendimento que os alunos construíram durante o seu percurso escolar, na convivência familiar e nas suas relações sociais. A concepção de raça é estabelecida por uma construção social, não há nenhuma base biológica; sua importância está na classificação que as pessoas podem fazer do “outro” conforme os juízos socialmente enunciados e aceitos. “O uso do termo raça fortalece distinções sociais que não possuem qualquer valor biológico, mas a raça continua a ser imensamente importante nas interações sociológicas e, portanto, deve ser levada em conta nas análises sociológicas e históricas. (...) Raça existe apenas em razão das ideologias racistas” (Telles, 2003, p. 38). No segundo bimestre, com o propósito de que os alunos compreendessem melhor os conceitos de catarse, mimese e verossimilhança, foram feitas leituras dos contos Clara do Anjos, de Lima Barreto, e Negrinha, de Monteiro Lobato, além do capítulo “Ratos”, do livro Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. Destacamos que a reflexão produzida pelos alunos resultou na apreensão que obtive das políticaspráticas educacionais cotidianas, daquilo que elas incluem e excluem, significam, são e podem ser. Isso significa que os processos ensinoaprendizagem acontecem mediante a tessitura de currículos praticadospensados (Oliveira, 2013, p. 382) cotidianos em rede, e não pelo “praticismo” – a hipervalorização das práticas que frequentemente não considera as causas integrantes da sua composição e as possibilidades de seu aprimoramento (Oliveira, 2013, p. 382) – nem pelas teorias desenvolvidas pelos intelectuais.

Neste artigo, partimos do entendimento de que a experiência social no mundo é muito mais profusa e diversificada do que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e julga importante, pois a compreensão do mundo extrapola a compreensão ocidental de mundo (Santos, 2004, p. 778). Por esse motivo, buscamos desenvolver um projeto educativo emancipatório, baseado no conflito, para tornar múltiplos em seus sentidos praticáveis os conteúdos de ensino (Santos, 1996, p. 18). Objetivamos provocar e chegar à discussão sobre a ideia de “raça” em seu significado moderno, que serviu, historicamente, como sustentação da colonialidade do poder global que vemos hoje (Quijano, 2005, p. 107). Essa ideia constituiu a formação das relações sociais e gerou, nas Américas, múltiplas identidades sociais que fundam hierarquias basilares de vinculação à dominação como fundamentação de uma cultura de racismo e etnicismo.

Tomamos como uma das bases as Leis Federais nº 10.639/03 e nº 11.645/08. A primeira propõe novas diretrizes curriculares para o estudo da História e Cultura Afro-Brasileira e a segunda complementa a primeira, adicionando no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática da História e Cultura Indígena. Esses documentos legais representam um avanço, conquistado com forte mobilização do movimento negro, diante do fato de haver no Brasil um universo significativo de estudantes afrodescendentes nas salas de aula que ainda ouvem a enunciação: “escravo africano”. A nossa comunicação é resultante de um primeiro olhar do projeto de doutorado, que parte das pesquisas nos/dos/com os cotidianos escolares, o que requer “mergulhar” no nosso próprio cotidiano. A questão metodológica nos aponta e ajuda a compreender que não há prática que não esteja agregada a uma política, do mesmo modo que “não existe política que não se revele por suas práticas, ou seja, essa metodologia não diferencia uma da outra e une políticas educacionais a práticas cotidianas em uma única expressão: políticaspráticas” (Oliveira, 2013, p. 376).

Elegemos, inicialmente, fazer a nossa pesquisa de doutorado baseada no ensino da disciplina de Literatura Brasileira, com algumas inserções referentes à disciplina de História, pois ambas dialogam em seus conteúdos que, ao mesmo tempo, são relevantes para combater discursos hegemônicos e, simultaneamente, consideram a diversidade brasileira, em particular a diversidade racial. O projeto investiga as particularidades das relações raciais incidentes no cotidiano das escolas pesquisadas, que vêm precedidas da exposição das raízes históricas e sociais do enganoso pensamento racial que pôs e imputou ao cidadão afrodescendente condições intensamente desvantajosas na sociedade  (Oliveira, 2007, p. 259). A apreciação de  “raça” é empregada com o propósito de afirmar a intervenção das normas sociais, condicionada à vigência de afinidades sociais dos grupos hegemônicos que no Brasil do século XIX atribuíram à raça um conceito cientificista, somado à marca de diferenciação e categorização entre os homens. 

A indissociabilidade é muito mais acertada e proficiente para apreender a heterogeneidade das realidades cotidianas, as redes de saberes, fazeres e poderes, que dentro delas se tecem nas conexões entre as distintas dimensões do real, que nelas são originadas cotidianamente, nas diferentes influências constitutivas das políticaspráticas educacionais cotidianas. Somos sabedores de que somente esse mergulho na realidade vivida e construída pelos políticopraticantes do cotidiano – professores e alunos – nos permite ir mais longe que a concepção generalista daquilo que é vivenciado e produzido pelos currículos e no processo de aprendizagemensino no/do/com cotidiano escolar (Oliveira, 2013, p. 376), pois as pesquisas nos/dos/com nos possibilitam compreender, para além das normas e textos oficiais, aquilo que efetivamente constitui as políticaspráticas educacionais cotidianas.

Ressaltamos que, embora existam diferentes configurações e arquétipos de educação, entendemos a escola como um ambiente no qual há aprendizagemensino e aquinhoamos mais que o conteúdo ministrado, pois nela são ainda apreendidos crenças, costumes e preceitos, bem como a ratificação de preconceitos de gênero, classe social e racial.

Como abordagem teórico-metodológica, com base na metodologia de pesquisa nos/dos/com os cotidianos e na premissa do cotidiano como espaçotempo de produção e de circulação de conhecimentos, com os sujeitos em suas múltiplas redes de saberesfazeres, pretendemos observar, fazer entrevistas, pesquisar e selecionar os livros que abordam o debate sobre as questões de pesquisa, no campo da educação, dos currículos e, sobretudo, sobre a questão étnica, social e de identidade, bem como outros que possam conter pontos de contato com a discussão aqui levantada e nos permitam abordar a interseção no ensino nas escolas da Literatura Brasileira e da História. Uma das metas é resgatar as lutas e contribuições, que são pouquíssimo conhecidas não somente dos afrodescendentes e dos indígenas, mas também dos que não são mencionados, de acordo com o texto da Lei nº 11.645/08.

Depois de realizado o fichamento dos textos teóricos que abordam as questões de pesquisa, considerando os tópicos principais para nossa reflexão, os preconceitos, os discursos racistas e outras formas de rotular negativamente o “outro” que estão em nosso cotidiano, destacamos que a observação na sala de aula foi fundante nesta pesquisa, pois, por meio dela, pudemos acompanhar, vendo e ouvindo a mudança, a partir da leitura de mundo que preexiste à leitura dos vocábulos, estabelecendo dessa forma a conversação com a leitura de mundo dos estudantes, potencializando o que dizia Paulo Freire, pois o que apontamos já era reiterado pelo grande educador. O nosso objetivo foi fomentar essa outra leitura de mundo e, assim, poder ampliar a contribuição dos processos ensinoaprendizagem para provocar leituras de mundo descolonizadas e opostas ao imaginário racista hegemônico em nossas sociedades, viabilizando modos novos de estar e movimentar-se no mundo.

Território escolar: uma observação do cotidiano

O “lugar de fala” (Ribeiro, 2017, p. 63) é a localização na qual cada indivíduo passa a apreender o seu o entorno. A partir desse entendimento, ele estabelece concepções sobre si mesmo que irão gerar a produção de conhecimento, pois depreende que o mundo se movimenta por princípios que envolvem: raça, gênero e classes. A fala produzida não está associada à experiência; é motivada, nesse momento, em virtude da classe e condição social de que o indivíduo faz parte, pois esta irá permitir, ou não, o seu acesso à cidadania; ela não é fruto da experiência do sujeito. Djamila Ribeiro não está se referindo à fala do enunciador, mas ao conceito no qual as apreensões que temos de mundo se manifestam de formas desiguais na norma hegemônica. A contraposição que ocorre amiúde entre “lugar de fala” e “qual o meu lugar nessa fala” remete a entender que “o falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir. Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social” (Ribeiro, 2017, p. 66). A nossa fala, aliada às demais, será produzida nesse lugar após a percepção e o entendimento de quem sempre teve o direito de falar em meu lugar – pelas narrativas hegemônicas – nos ambientes de poder, de produção do conhecimento e representação social, em uma realidade que se movimenta com base nos princípios mencionados. Embora nossa composição seja bem diversificada, ela não se reflete nas produções acadêmicas ou na posse dos espaços de poder da sociedade.

Esse apoderamento não ocorre por falta de capacidade ou por não querermos; porém, em virtude de como está de volta a ideia de construção de muros, dos muros que foram levantados e que ainda são, no atual momento de retrocesso que o país e o mundo vivem, ainda são, com o propósito de vetar que estejamos nesses lugares de fala. Lugar este que está relacionado ao lugar social – definido como grupos sociais nos quais estamos inseridos, mas que individualmente são diferentes experiências que podem ser compartilhadas, e com base nesse compartilhamento variados temas de enunciação serão produzidos em rede, uma vez que o propósito do lugar de fala é revelar que existimos, não na visão que é determinada pelo pensamento hegemônico, mas em uma outra perspectiva que nos dá visibilidade.

Observamos, embora não seja novidade, que na escola – local social – são cotidianamente vivenciadas e praticadas diferentes produções e reproduções de enunciações que refletem o pensamento hegemônico, mas há também as que combatem esses pensamentos. Foram as racistas, homofóbicas, machistas e misóginas as quais dedicamos uma maior observação, pois são objeto da pesquisa que realizamos no cotidiano escolar como realidade micro, já que nele são refletidas as correspondências que preservam as estruturas e as regras sociais hegemônicas, uma vez que macro e micro estão intrínsecos um no outro (Oliveira; Sgarbi, 2008, p. 91-92).

Pudemos notar que quando os docentes e/ou discentes reagem contra ações discriminatórias levadas para o ambiente escolar acabam, nesses momentos, gerando estratégias e táticas (Certeau, 2014, p. 91) para sobreviver. Algumas dessas (re)produções que refletem, equivocadamente, um pensamento hegemônico geram comportamentos nos sujeitos que foram cooptados por ele que nos chamam a atenção. Eles perpassavam o isolamento, como observamos em alguns alunos que entravam na escola e se dirigiam direto para a sala de aula, saindo somente na hora de ir para casa, e outros que, no intervalo, juntavam-se na sala de aula de um dos colegas que passaram pelo mesmo problema. Também pela incorporação – por um grande número dos alunos – da enunciação de que não tinham capacidade cognitiva, por motivos variados, levando a turma às gargalhadas. Ou uso da prática sexual como forma de minimizar as adjetivações negativas sobre a sua estética ou por sua homossexualidade.

Os jovens que “autodeclaravam” sua homossexualidade eram aviltados pelos outros rapazes e, na maioria das vezes, essa aviltação era liderada pelos que tiveram contato homoerótico com eles, conforme enunciado por alguns(mas) adolescentes heterossexuais e por aqueles(as) que se declaravam homossexuais ou bissexuais.

No entanto, a estratégia que causou maior impacto à nossa observação estava associada à cor da pele. A negritude era negada por uma considerável maioria dos alunos, por ser um elemento que agravava ainda mais os epítetos das discriminações. Alunos afrodescendentes uniam suas vozes às dos colegas que tripudiavam do “outro”; quando foram perguntados por que o faziam, já que eram afrodescendentes, a resposta era dada entre risos, “eu sou mais claro que ele, minha cor é bem mais clara que a dele, que é ‘negão’”, ou “ele(a) é muito mais ‘preto(a)’ que eu”, “ela é ‘neguinha’, eu não”. Vale lembrar que o movimento da negritude concebido fora das fronteiras africanas tem seu surgimento em função do protesto de intelectuais negros europeus, conscientes da distinção na recepção e no rebaixamento que os habitantes da Europa infligiam aos negros da diáspora africana. Possivelmente tenha surgido nos Estados Unidos, com o movimento literário ocorrido no Harlem, em Nova Iorque, chegou às Antilhas e posteriormente à França, quando foi empregado pela primeira vez por Aimé Césaire, em 1939.

Duas conclusões epistemológicas são produzidas a partir desses mergulhos. A primeira é de que os estudos dos cotidianos não são contação de histórias; eles estão voltados para a produção de conhecimento, como já nos referimos, e contribuem de forma significativa para as práticas de emancipação social (Oliveira; Sgarbi, 2008, p. 67-68). A segunda aponta para a escolha do uso da palavra “cor” pela ideia de continuidade gerada entre “raças” que se superpõem, em função da concepção de branqueamento que produziu a flexibilização da classificação racial no país, mas que está também impregnada de conotações ideológicas, como o termo raça, pois revela características físicas: forma dos lábios, nariz, tipo de cabelos (Telles, 2003, p. 104).

Uma conversa sobre identidade

A partir da observação nos espaçostempos, local no qual pudemos iniciar nossos estudos – ainda estamos pesquisando para a produção da tese – sobre os fatos e a vida cotidiana com a finalidade de pensarmos as demandas sociais (Oliveira; Sgarbi, 2008, p. 73). Segundo Morin, em seu livro Introdução ao pensamento complexo, é no cotidiano que o sujeito faz uso das diferentes identidades que desempenha em cada uma de suas representações sociais: “a vida mais cotidiana é, de fato, uma vida em que cada um joga vários papéis sociais, conforme esteja em sua casa, no seu trabalho, com amigos ou desconhecidos” (Morin, 2011, p. 57). Reafirmamos a importância de realizar essa pesquisa em Educação, nos estudos do cotidiano, uma vez que eles continuam contribuindo para o entendimento da complexidade em cada espaçotempo escolar, seja na busca de saberes, valores e modos, sempre com base no diálogo e respeito à sua forma de ser.

Entendemos a necessidade de trazermos para a pesquisa em educação as contribuições dos estudos do cotidiano, porque estes estão voltados para a compreensão dessa complexidade, buscando captar saberes, valores e modos de interação específicos a cada espaçotempo escolar, respeitando-lhe o modo de ser e com ele dialogando (Oliveira; Sgarbi, 2008, p. 73).

Não podemos nos afastar da concepção de tecer as redes de saberes, pois esta tessitura de conhecimento possibilitará o contato com a multiplicidade de experiências dos sujeitos que concebem/conceberam princípios e saberes, conhecimentos que somente podem ser aclarados se empregarmos nossa atenção na compreensão dessas complexas redes em que estão entrelaçados (Alves, 2015, p. 134). Os nossos conhecimentos são gerados com base no conhecimento do outro; é desse entrelaçamento que um novo será produzido (Alves, 2015, p. 185), uma vez que reinventar o próprio ato de pesquisa é uma das tarefas dos pesquisadores dos cotidianos (Oliveira; Sgarbi, 2008, p. 92). A pesquisa com os cotidianos das escolasproporcionou perceber que os preconceitos, mais precisamente o racismo, movimentam-se nesse ambiente que, além de praticá-los, os ampliam. No entanto, a maioria dos envolvidos na sua propagação não se enxerga e/ou não é vista como indivíduo preconceituoso por ter uma visão eurocêntrica, que é plena na nossa sociedade e nas suas enunciações.
Como ainda estou no início da pesquisa dos estudos sobre as enunciações e os usos dos preconceitos como geradores e/ou reprodutores do racismo, homofobia, machismo... pelos sujeitos, se faz necessário para a tessitura de conhecimento e significações o questionamento dos trajetos já conhecidos dessas generalizações para dar início à busca de outras trilhas (Alves, 2015, p. 184), que nos indicará outro(s) trajeto(s), pois,

se vamos investigar, por exemplo, os valores, muitas vezes em seu aspecto negativo – os preconceitos –, quase que com certeza não conseguiremos (e mais comumente, não poderemos, pelas mesmas múltiplas questões que lhes facilitaram o aparecimento) identificar, com facilidade, as redes de relações cotidianas nas quais os fomos criando e firmando, transformando-os em “verdades” orientadoras. Por isso mesmo é que, para identificar, caracterizar, analisar e (...) superar esses conhecimentos “verdadeiros”, será preciso trabalhar com suas próprias lógicas, o que nos exige muito trabalho (Alves, 2015, p. 185).

Partimos do entendimento dos currículos pensadospraticados (Oliveira, 2012, p. 3), já que neles não ocorre a inerência entre a prática e a teoria e, principalmente, a ação e a reflexão, pois permitirá ações emancipatórias que irão potencializar e multiplicar a compreensão constituídas no respeito e na aceitação das diversidades presentes no espaçotempo da escola e fora dela, rompendo com o paradigma da modernidade de emancipação.

Isso porque entendemos que existe, no cotidiano das escolas, uma criação cotidiana de currículos pelos professores e alunos nas salas de aula, gerada a partir do diálogo entre referenciais e reflexões teóricas, possibilidades e limites concretos de cada circunstância e da articulação entre as múltiplas redes de sujeitos e de conhecimentos presentes nas escolas (Oliveira, 2012, p. 3-4).

O projeto emancipatório desenvolvido com o objetivo de promover a discussão sobre a identidade iniciou-se com a discussão semântica do vocábulo “resistência” e seus sentidos positivos e negativos. Como positivo, vários apontaram os funks, inicialmente, pois algumas letras reproduziam o que eles vivenciavam. Como negativo, destacaram o fato de a direção não permitir que eles frequentem a escola com “calças rasgadas”, que segundo eles estão na moda e todo mundo usa.

Na aula seguinte, após a leitura do conto Pai contra mãe, de Machado de Assis, as alunas apontaram o machismo como negativo. Grande parte dos alunos também concordou. E, como positivo, a Lei Maria da Penha. A razão dessa escolha estava associada ao fato de grande parcela ter presenciado atos violentos em casa, ocorridos com parentes próximas ou vizinhas.

Após a leitura, nas aulas posteriores, dos contos Clara do Anjos, de Lima Barreto, Negrinha, de Monteiro Lobato, e o capítulo “Ratos”, do livro Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, somente uma das turmas ainda apontou as marcas semânticas de “resistência”. As outras duas turmas, após as leituras individuais, como nos contos anteriores, pontuaram a questão da “cor” – pois não havia outro vocábulo para suscitar o debate e um olhar sobre si mesmo –, e “raça” como elemento fundamental de reconhecimento da identidade. Houve alunas que levantaram questionamento sobre a desvalorização da mulher negra em comparação com a mulher branca, após a explicação dos conceitos de mimese e verossimilhança, mais pela experiência do que pela explicação do que é a intertextualidade. Apontarei somente duas das respostas que ouvi em uma das duas turmas, após perguntar se elas estavam aplicando aqueles conceitos aos textos. As respostas foram:

Não. É porque minha irmã não foi pro caixa do mercado, porque o gerente disse ‘pra’ ela que a outra empacotava mais rápido que ela. Mas ela falou com a amiga dela que tava lá em casa, que tem certeza que é porque ela é escura e a outra é branquinha. Como meu pai está desempregado e as faxinas da minha mãe diminuíram, ela ficou calada.

A outra foi:

Professor, minha mãe chegou em casa outro dia muito “puta”. Ela disse pra minha tia, e eu ouvi, que tá cansada do porteiro deixar a empregada do apartamento de cima usar o elevador da frente, e ela tem de ir pelo dos fundos. Ela perguntou hoje a ele por que e ele disse que a outra parece madame. Minha mãe xingou ele de filho da puta e disse:’ é por que eu sou preta!?’ Ele riu e falou: ‘eu não disse nada, só falei que ela parece madame’.

A partir das falas das alunas, observei que ficou evidente para os alunos que as questões dos discernimentos raciais produzidos pelos outros foram fundamentais para contribuir no processo de sua autoidentificação na convivência social e/ou na geração das oportunidades que irão vivenciar. Estão se apoderando do seu lugar de fala e representatividade, mas também rompendo com a norma hegemônica ao fazer com que os jovens reflitam sobre o seu lugar de fala, ou seja, sobre o machismo.

O desdobramento gerado depois da aplicação desse projeto, com base nos currículos pensadospraticados, gerou três fotonovelas produzidas pelas turmas com a participação de todos alunos de cada uma, e o tema sugerido por eles foi “a mulher”, dividido em: A mulher negra, Violência contra a mulher e Valorização da mulher.

Embora ainda esteja na fase de levantamento, pude notar, salvo se minha leitura for equivocada, que em apenas dois bimestres teve início um processo de resistência, ou seja, a compreensão de que há outras perspectivas no intuito de ter uma vida social diferenciada da proposta pela ideologia hegemônica, ainda que esse seja um longo e árduo processo.

Considerações ainda caminhando para a final

A partir da observação e de várias anotações no caderno que me acompanha todos os dias, e no qual anoto os fatos dos cotidianos escolar, sejam os que acontecem nos corredores, bebedouros, na entrada e saída dos banheiros, na chegada e/ou saída dos alunos na escola, com os(as) professores(as), inspetoras(es), apoio pedagógico e diretoras, foi possível começar a desenvolver esse projeto educativo emancipatório que tem como objetivo promover, a partir da estranheza e da indignação, a inconformidade (Santos, 1996, p. 17). 

As formas contra-hegemônicas de agravamento dos conflitos culturais são protagonizadas pelos movimentos e grupos sociais que lutam peça afirmação da identidade cultural contra a homogeneização descaracterizada pretendida pela cultura hegemônica (Santos, 1996, p. 28). 

Outro aspecto importante observado, mesmo ainda estando na superfície, já que precisa ser mais aprofundado, está na afirmação de um aluno, que narrou:

O meu padrinho é ‘negão’ e reside em um bairro de classe média alta. Sempre que vamos com ele em um restaurante ‘bom’ demoramos a ser atendidos e o garçom não dá a mínima para as perguntas que o padrinho faz. Ou quando entramos em uma loja no shopping, os seguranças andam atrás dele.

Embora ainda não seja de forma tão consistente, sua enunciação aponta para a percepção de que a ideologia racial no Brasil é um pensamento falacioso, ao estabelecer que as distinções raciais não são segregações ligadas às diferenças entre as classes sociais, mas a mácula social da raça.

Referências

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Publicado em 11 de agosto de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

CAMPOS, Luiz Carlos de Sá. Uma conversa sobre identidade: a partir dos estudos dos cotidianos e literatura. Revista Educação Pública, v. 20, nº 30, 11 de agosto de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/30/uma-conversa-sobre-identidade-a-partir-dos-estudos-dos-cotidianos-e-literatura

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LUIZ CARLOS DE SÁ CAMPOS • 1 ano atrás

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