O currículo e a coordenação pedagógica: o desafio da aplicabilidade

Daniel Daumas

Doutorando em Musicologia (UFRJ), mestre em Musicologia (UNIRIO), especialista em Coordenação Pedagógica (Uniasselvi), em Docência do Ensino Superior (Unimes) e em Metodologia do Ensino de Geografia e História (UCAM), licenciado em Música (UCAM) e em História (UNIRIO), coordenador pedagógico no Colégio Estadual Quintino Bocaiuva, em Cachoeiras de Macacu/RJ e professor da rede municipal de Cachoeiras de Macacu/RJ

O campo de pesquisas em Educação que tratam de questões curriculares e que trazem reflexões acerca das práticas da coordenação pedagógica vem ganhando cada vez mais relevo desde ao menos a década de 1990. Refletir sobre as relações entre as chamadas teorias do currículo e as possíveis aplicações de tais teorias na atuação do coordenador pedagógico torna-se cada vez mais necessário, sobretudo quando consideramos a promulgação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Ensino Fundamental e sua promulgação próxima para o Ensino Médio. Sendo o ator responsável por mediar e auxiliar na prática de ensino-aprendizagem dos professores, o coordenador pedagógico deve armar-se do máximo de informações possíveis sobre os debates acerca da temática currículo, assim como é mister que tal ator esteja ciente dos debates atuais que criticam os rumos adotados pelos sistemas de ensino no mundo e no Brasil. O presente artigo articula então dois eixos – por um lado, a produção crítica bibliográfica consultada; por outro, as vivências do autor no dia a dia na coordenação pedagógica em um colégio público da rede estadual de educação do Rio de Janeiro – o Colégio Estadual Quintino Bocaiuva, em Cachoeiras de Macacu.

O trabalho dos professores em sala de aula – cada vez mais sobrecarregados com as novas demandas de proficiência em novas tecnologias –, ainda que muito variado entre si, guarda ao menos alguns elementos de similitude. De fato, “a dificuldade em matéria de ensino, de exposição ou de apologia é a de se repetir sem dar a impressão de que se repete, porque tanto gostam o ouvido e o espírito de reencontrar sob uma forma nova o que se lhes depara (...) quanto detestam o regresso ao idêntico” (Guitton, 2018, p. 75). E de algum modo podemos levar essa afirmação para o campo da análise das propostas curriculares estabelecidas pela BNCC, já que ao longo da parte introdutória do documento ficamos com a impressão de que aquela novidade ali contida já nos foi dita, com outras palavras, em outros documentos e em alguns autores, como Silva (2013); Moreira e Silva (2002) e Moreira (2003). Claro que uma boa parte dessa impressão pode ser creditada ao saldo das conquistas alcançadas pela luta constante de educadores e demais movimentos que atuam na Educação, ou seja, algum tipo de abordagem ou mesmo de seleção de conteúdos que aparecia como um objetivo a ser alcançado a médio ou longo prazo num artigo publicado em fins dos anos 1990 ou início dos 2000 aparece agora no documento oficial da BNCC como a efetivação legal dessa luta. No entanto, há que se analisar com o máximo de cuidado possível cada caso em particular para se tentar revelar o que realmente pode estar contido sob o véu das aparentes similitudes.

O artigo está dividido em duas partes centrais: 1) as teorias do currículo; 2) reflexões críticas sobre o trabalho escolar atual. Nas duas partes, a análise e a discussão da bibliografia consultada foram relacionadas à experiência profissional do autor, de modo que as afirmações obtidas pelos autores consultados são confrontadas com uma realidade escolar particular. Cabe ressaltar, porém, que compreendemos as inerentes peculiaridades de cada contexto escolar, e que, portanto, a inclusão de nossa vivência particular visa somente fornecer uma visão e uma interpretação específica, que objetiva sobretudo oferecer mais um exemplo a ser vislumbrado à luz mesma da bibliografia consultada, não caindo na ilusória ideia de se generalizar a experiência obtida num colégio estadual do interior do Estado do Rio de Janeiro como paradigmática das condições gerais da escola pública brasileira.

Os vários currículos

Enxergado como caminho formativo intencionalmente montado no intuito de conduzir o estudante na estrada do aprendizado de determinados conteúdos e/ou procedimentos, podemos afirmar que o ser humano sempre possuiu algum tipo de currículo elaborado. A própria dinâmica de transmissão de conhecimentos de uma geração mais velha à geração mais nova – prática comum a toda cultura humana até hoje conhecida – já traz implicitamente um esboço curricular, mesmo que difusa e coletivamente elaborado. Na Idade Média europeia, como demonstra Jaeger (2019), há uma profunda preocupação com as questões concernentes ao que se deve estudar e que resultados se procura obter a partir desse estudo. Apesar dessa presença incontestável ao longo da história humana, como campo de pesquisa científica (nos moldes modernos) podemos identificar o surgimento do campo dos estudos do currículo entre fins do século XIX e, sobretudo, o início do século XX. Silva (2013) demonstra como essa trajetória do currículo como campo de investigação educacional se deu e agrupa as tendências e visões em três grupos: teorias tradicionais; teorias críticas; teorias pós-críticas.

Antes de entrar propriamente nas características de cada um dos grupos, Silva (2013) levanta a discussão acerca do termo teoria. Para ele, ao se utilizar esse termo se estaria afirmando implicitamente a existência anterior de algum currículo, já que “a teoria é uma representação, uma imagem, um reflexo, um signo de uma realidade que – cronologicamente, ontologicamente – a precede” (Silva, 2013, p. 11). Ao problematizar tal questão, Silva (2013) estabelece seu lugar de fala numa perspectiva pós-estruturalista, já que encara como problemática essa visão acerca da teoria, enfatizando que a teoria “não se limitaria, pois, a descobrir, a descrever, a explicar a realidade: a teoria estaria irremediavelmente implicada na sua produção” (Silva, 2013, p. 11). Logo, estabelecer uma teoria sobre algo é de alguma forma atuar no sentido de criá-lo. Para evitar essa questão problemática, Silva (2013) afirma então que faria mais sentido referir-se aos discursos ou textos.

Para voltar ao nosso exemplo do “currículo”, um discurso sobre o currículo – aquilo que, numa outra concepção, seria uma teoria – não se restringe a representar uma coisa que seria o “currículo”, que existiria antes desse discurso e que está ali, apenas à espera de ser descoberto e descrito. Um discurso sobre o currículo, mesmo que pretenda apenas descrevê-lo “tal como ele realmente é”, o que efetivamente faz é produzir uma noção particular de currículo. A suposta descrição é, efetivamente, uma criação. Do ponto de vista do conceito pós-estruturalista de discurso, a “teoria” está envolvida num processo circular: ela descreve como uma descoberta algo que ela própria criou. Ela primeiro cria e depois descobre, mas, por um artifício retórico, aquilo que ela cria acaba aparecendo como uma descoberta (Silva, 2013, p. 12).

De posse dessa reflexão acerca do uso problemático do termo currículo e tendo em mente que seu uso pode implicar uma construção social disfarçada de descoberta, Silva (2013) mantém o seu uso, a fim de facilitar a compreensão do leitor, já que o termo é amplamente utilizado. Como bem salienta o autor, “a questão central que serve de pano de fundo para qualquer teoria do currículo é a de saber qual conhecimento deve ser ensinado” (Silva, 2013, p. 14). A importância de nos determos por mais tempo nesse tópico é grande. Mesmo durante os encontros e assembleias que precederam a elaboração do documento final da BNCC, ficou claro que a disputa girava em torno do que deveria estar e do que não deveria estar num currículo nacional. No fim das contas, “o currículo é sempre o resultado de uma seleção: de um universo mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte que vai constituir, precisamente, o currículo” (Silva, 2013, p. 15). Ao se estipular um currículo, se realiza uma escolha, consciente ou não, de quais transformações ou resultados se espera obter daqueles que por esse currículo “passarão”. Daí o quão importante e relevante é esse tema – não só para os profissionais diretamente ligados à Educação, como também para o conjunto da sociedade, pois, de fato “além de uma questão de conhecimento, o currículo é também uma questão de identidade” (Silva, 2013, p. 15).

As teorias do currículo e sua aplicação

No cotidiano escolar travam-se contatos entre vários atores – alunos, professores, pais, equipe diretiva etc. – que possuem visões distintas acerca dos rumos educacionais que devem ser tomados. Como descreve Oliveira (2020), no processo de articulação entre os atores que compõem uma comunidade escolar o coordenador pedagógico tem função de destaque. Cabe a ele, dentre outras coisas, assessorar a direção e encaminhar os processos de discussão de modo que a gestão escolar e, sobretudo, o aspecto didático-pedagógico aconteçam de modo democrático e inclusivo. Ainda em Oliveira (2020), vemos que uma das funções do coordenador pedagógico é atuar como formador ou facilitador do processo de formação continuada dos professores. As proposições de projetos e demais atividades de cunho interdisciplinar fazem também parte da gama de atribuições e possibilidades que o cargo possui. Nos momentos de reunião e articulação pedagógica, no entanto, vivenciam-se na prática os encontros e os embates entre as visões acerca da condução curricular, já que dentro de um corpo docente – como o do colégio onde o autor exerce a função de coordenador pedagógico – coexistem indivíduos com preferências que podem ser vinculadas às chamadas teorias tradicionais até aos do campo das teorias pós-críticas.

Cada um dos três campos teóricos busca enfatizar elementos que, na prática cotidiana de uma escola, não podem ser completamente ignorados. Ou seja, ainda que houvesse unanimidade entre os professores no sentido de constituir uma escola e um currículo alinhados às teorias pós-críticas, por exemplo, tal alinhamento único seria praticamente impossível, já que elementos enfatizados por outros campos teóricos fazem parte intrínseca do processo de educação formal. Como demonstra Silva (2013), as teorias tradicionais de currículo enfatizam questões como: ensino, aprendizagem, avaliação, metodologia, didática, organização, planejamento, eficiência e objetivos. O campo das teorias críticas enfatiza: ideologia, reprodução cultural e social, poder, classe social, capitalismo, relações sociais de produção, conscientização, emancipação e libertação, currículo oculto e resistência. Por fim, nas teorias pós-críticas o foco recai em: identidade, alteridade, diferença, subjetividade, significação e discurso, saber-poder, representação, cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade e multiculturalismo.

Parece ser impossível imaginar uma escola na qual não haja preocupação, planejamento e reflexão acerca dos processos de ensino-aprendizagem e avaliação, de metas e objetivos educacionais estabelecidos e dos métodos a serem utilizados para alcançar tais objetivos. Também é certo que a existência do chamado currículo oculto – a parte do aprendizado que se transmite sem que se expresse tal transmissão –, assim como as discussões sobre questões sociais, poder e desigualdade social na sociedade brasileira, aparecem regularmente nas discussões internas da comunidade escolar. E surgem inequivocamente nas reuniões pedagógicas e de pais as reflexões que tratam da relação de alteridade na escola, da valorização da cultura local e do aluno, as discussões sobre o combate à intolerância e ao preconceito de todos os tipos – raça, gênero, etnia, sexualidade – e a capacidade de representação juvenil no ambiente escolar. Ou seja, na prática o que podemos observar é uma sobreposição em vários níveis dessas teorias curriculares, que surgem e convivem no cotidiano escolar de maneira implícita à própria dinâmica de funcionamento institucional. A coordenação pedagógica não pode ignorar questões relacionadas ao ensino-aprendizagem ou à avaliação por considerá-las aspectos demasiadamente ligados às preocupações das teorias tradicionais de currículo. Da mesma forma, não pode fazer-se de surda ante os aspectos ideológicos e de desigualdade social existentes em seu contexto específico e no Brasil como um todo. O mesmo se dá em relação aos professores, dirigentes e demais membros da comunidade escolar.

Na organicidade da escola pública – tal como vivenciamos em nosso contexto específico –, não conseguimos (ou talvez, nem almejamos) estabelecer uma abordagem hegemônica em relação a determinada corrente curricular. Cada professor vai identificar-se e aproximar sua prática das ideias e ideais de determinada teoria curricular, ainda que não seja possível fazê-lo completamente, já que toda ação docente carrega um quê de mosaico, trazendo consigo alguns fragmentos das outras teorias curriculares. Somam-se a isso as regulamentações oficiais que pairam sobre todos os professores na escola: as Diretrizes Curriculares Nacionais; os Parâmetros Curriculares Nacionais; o Currículo Mínimo (no caso da rede estadual do Rio de Janeiro); e agora a BNCC. A articulação de todos esses componentes, aliada à necessidade cada vez mais explícita nos documentos curriculares oficiais da implementação da interdisciplinaridade na prática cotidiana das escolas, constitui uma tarefa pesada para os profissionais da Educação que vivem o dia a dia das escolas, em especial o coordenador pedagógico. Manter a coesão entre o corpo docente e suas práticas, a equipe diretiva e as várias demandas que ela precisa atender e os anseios e expectativas do corpo discente exige do coordenador pedagógico a consciência de que “como territórios de contestação e produção cultural, as escolas incorporam representações e práticas que tanto estimulam quanto inibem o exercício da ação humana no meio dos estudantes” (Giroux; McLaren, 2002, p. 143).

A seguir iremos abordar algumas das críticas mais duras que têm sido direcionadas ao modelo de educação formal praticado em boa parte dos países ocidentais, procurando identificar tais críticas no cotidiano vivenciado pelo autor e as suas possíveis soluções caso sejam situações passíveis de solução em âmbito local.

A crise da escola ou na escola?

Os debates sobre a crise na Educação brasileira são vastos e antigos. Inúmeros são os trabalhos universitários, artigos e simpósios que se debruçaram e debruçam sobre o tema do chamado fracasso escolar brasileiro. Apesar da grande expansão na oferta de matrículas, alcançando agora em fins da segunda década do século XXI praticamente 100% dos alunos em idade escolar, o desempenho e a conclusão da Educação Básica na idade adequada deixam ainda muito a desejar. No entanto, o objetivo só estaria sendo frustrado se considerarmos que o que se almeja ao oferecer a escolarização básica seja um aumento nas capacidades e habilidades cognitivas e intelectuais dos estudantes. E se houvesse um interesse diferente deste guiando os rumos da educação formal? Nesse caso, talvez o que enxergamos como sendo um fracasso escolar seja na verdade o produto de interesses específicos de determinados grupos sociais.

Ao procurar compreender os processos que levaram à crise da escola na França, Bernardin (2012) analisou uma série de publicações de organismos internacionais, como a Unesco e a OCDE, dentre outras, procurando encontrar o que ele denominou como uma revolução pedagógica. Segundo ele, o que se pode encontrar nesses documentos públicos é uma clara e explícita modificação do papel da escola, que, ao invés de uma formação intelectual, deveria tornar-se nada mais que o instrumento de uma revolução cultural e ética destinada a modificar os valores, as atitudes e os comportamentos das pessoas, tudo isso em escala mundial.

A mudança de foco do eixo de formação intelectual para o de modificação comportamental seria o núcleo do que denominamos “crise da escola”. Ao enfatizar mais os aspectos comportamentais do que os de aprendizagem acadêmica, o resultado foi a queda na qualidade geral do ensino, mesmo com o incremento no quantitativo de verbas destinadas à educação e ao aumento no acesso à escola. E a ferramenta adotada para realizar essa mudança de foco, segundo Bernardin (2012), foi a técnica de manipulação psicológica. Analisando os documentos destinados a orientar a formação de professores e a concepção de currículos para a Educação Básica, Bernardin (2012) descobriu um grande acervo de direcionamentos de cunho psicológico cujo intuito era fomentar a adoção de métodos e técnicas que visem reformular as visões de mundo e os valores dos alunos, às vezes indo de encontro às crenças e aos valores de tais pessoas. Um dos exemplos dados por ele é o da estimulação contraditória, na qual se incentiva o aluno a tomar parte numa atividade que a princípio ele repudia – por conta de seus valores familiares ou religiosos – e que, uma vez tendo praticado, faz com que tal aluno realize uma racionalização posterior buscando inserir aquela atividade na sua gama de valores ou crenças aceitas. Como bem explica Bernardin,

após ter obedecido, e com a sensação de tê-lo feito livremente, os indivíduos geralmente adotam o conteúdo, a maioria das vezes avaliativo, do ato que eles acabam de executar. Mais amplamente, as situações de dissonância cognitiva conduziriam a uma submissão dos indivíduos, por exemplo, à justificação de sua obediência por uma modificação avaliativa de suas posições iniciais. Dito de outro modo, e por extensão, após ter praticado um comportamento contrário às suas atitudes, o indivíduo, por um processo de racionalização, se esforçaria por conformá-lo às suas atitudes e opiniões. Mais do que isso, é provável que uma conduta possa comprometer a ponto de determinar novas condutas e não somente modificar as posições atitudinais (Bernardin, 2012, p. 36).

Munidos de tais ferramentas, os dirigentes das organizações internacionais que tratam da educação e da cultura seguem seu plano de “redefinir o papel da escola, que deverá então oferecer um ensino multidimensional: intelectual, mas sobretudo ético, cultural, social, comportamental e até mesmo político e espiritual” (Bernardin, 2012, p. 49). É importante salientar como esses objetivos analisados pelo autor se assemelham a muitos dos posicionamentos que podemos observar na própria documentação e na legislação educacional brasileira, como os temas transversais, que atendem as expectativas dessa abordagem multidimensional citada por ele. Para esclarecer essa questão convém que fique claro que o chamado ensino multidimensional é composto por duas partes principais, sendo “um ensino ético, destinado a modificar os valores, as atitudes e os comportamentos; e um ensino multicultural, depois intercultural, destinado a rematar essa revolução psicológica mediante uma revolução cultural” (Bernardin, 2012, p. 52).

São raras as reuniões pedagógicas nas quais não se levante a reflexão sobre os impactos de determinada atividade ou disciplina sobre os aspectos comportamentais e atitudinais dos alunos, atividade essa que muitas vezes chega a se sobrepor a outras de caráter mais instrucional ou conteudista. É também muito comum que alguns professores questionem costumeiramente as iniciativas de caráter interdisciplinar e multidisciplinar, como a realização de palestras por membros de instituições da sociedade civil, de órgãos da saúde etc., que acabam tomando o tempo de suas aulas. Nesses questionamentos fica claro o incômodo dos professores em relação aos obstáculos que se interpõem entre a sua atuação diretamente relacionada à sua disciplina e as demandas – muitas vezes oriundas de órgãos externos à escola – que acabam conduzindo a experiência educativa dos estudantes mais no caminho da formação multidimensional com viés de modificação comportamental do que no do desenvolvimento intelectual propriamente dito.

As reflexões críticas sobre o atual estado da Educação no Ocidente perpassam vários países, e mesmo nos com bons resultados educacionais – em testes internacionais como o Pisa; a França e a Suécia já começam a suscitar o interesse de pesquisadores. É o caso da pesquisadora sueca Inger Enkvist, que em livro recente fornece inquietantes observações sobre os rumos do sistema educacional. Ao questionar as correntes de pensamento que negam a existência da realidade e, consequentemente, a existência da verdade, mergulhando assim todo processo de ensino num subjetivismo absoluto, enfatiza que “se respeitamos a pessoa humana, se pensamos que o ser humano tem vontade própria e pode estabelecer metas em sua vida, então a educação deve convidar os jovens a aprender todo o possível para que possam se tornar as pessoas que querem ser quando crescerem” (Enkvist, 2019, p. 16).

Para Enkvist (2019), o problema central da educação na atualidade está no fato de que a autoridade do professor – visto anteriormente como o sujeito conhecedor de determinada disciplina – foi diminuída em prol de uma visão mais aberta e inclusiva, que acabou por aproximar sua atuação em sala de aula mais à do assistente social ou psicólogo do que ao educador nos termos que se viam anteriormente. A impossibilidade de cobrar dos alunos uma postura respeitosa, ordeira e comedida levou os ambientes escolares a se transformar num espaço lúdico para os desrespeitosos e desinteressados e num inferno para os professores e alunos que objetivam dedicar aquele tempo aos estudos e à formação intelectual. A saída, segundo Enkvist (2019), está no retorno aos padrões de conduta tradicionais, os quais resgatariam a credibilidade dos professores perante os alunos e a sociedade como um todo e conscientizariam os alunos acerca da importância de engajar esforço, tempo e ordem no processo de aquisição e construção do conhecimento.

Considerações finais

A necessidade da escola para a sociedade atual é cada vez mais intensa. Com o grande fluxo de informações disponíveis a todos por meio dos recursos tecnológicos, a escola surge como a instituição capaz de municiar os indivíduos com os critérios e os filtros adequados para que eles possam navegar e discernir, nesse mar de informações, aquelas que lhes parecem mais plausíveis e benéficas, tanto individual quanto socialmente. Como vimos, não é possível falar sobre educação sem considerar as questões curriculares, sejam de quais tendências forem. Do mais libertário e anárquico ao mais conservador e tradicionalista dos professores, todos estão intrinsecamente atrelados a uma visão sobre currículo, visão que nunca é única, já que necessariamente formulada sofrendo influência das várias correntes que pensam o currículo escolar.

Ao coordenador pedagógico cabe a difícil tarefa de compreender essas múltiplas conexões entre os diversos currículos e visões de mundo e procurar integrá-las na prática dos professores em sala de aula, contribuindo para a conscientização do melhor método e caminho a ser seguido por cada docente e pela escola como um todo em dado contexto histórico-social. Por seu caráter desafiador, tal tarefa se mostra das mais interessantes e instigantes para um profissional da Educação que tem, pela natureza mesma de sua atividade profissional, espírito indagador e investigativo. Essa necessidade de buscar novas formas de compreender as situações vivenciadas no cotidiano escolar é parte inerente do processo de constituição e consolidação profissional da figura do coordenador pedagógico.

Não há condição, no entanto, de escamotear o fato de que a educação formal e a própria instituição escola passam por uma crise. A busca por compreender a natureza e as possíveis causas de tal crise fez com que nos deparássemos com as contribuições de Bernardin e Enkvist, que, longe de se constituir num tipo de evangelho a ser seguido dogmaticamente, fornecem rico material de análise e reflexão, reflexão esta que deve ser feita por cada um de nós que, direta ou indiretamente, está ligado ao campo da Educação.

Referências

BERNARDIN, Pascal. Maquiavel Pedagogo: ou o Ministério da Reforma Pedagógica. Trad. Alexandre Müller Ribeiro. Campinas: Ecclesiae, 2012.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Brasília: MEC, 2019.

ENKVIST, Inger. Educação: guia para perplexos. Trad. Felipe Denardi. Campinas: Kírion, 2019.

GIROUX, Henry A.; McLAREN, Peter. Formação do professor como uma contra-esfera pública: a pedagogia radical como uma forma de política cultural. In: MOREIRA, Antônio F. B.; SILVA, Tomaz T. (Orgs.). Currículo, cultura e sociedade. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.

GUITTON, Jean. O trabalho intelectual. Conselhos para os que estudam e para os que escrevem. Trad. Lucas Félix de Oliveira Santana. Campinas: Kírion, 2018.

JAEGER, C. Stephen. A inveja dos anjos: as escolas catedrais e os ideais sociais na Europa medieval (950-1200). Trad. Nelson Dias Corrêa. Campinas: Kírion, 2019.

MOREIRA, Antônio F. B.; SILVA, Tomaz T. (Orgs.). Currículo, cultura e sociedade. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 2002.

______. (Org.). Currículo: questões atuais. Campinas: Papirus, 2003.

OLIVEIRA, Francisco Lindoval. O coordenador pedagógico e o seu papel no cotidiano escolar. Educação Pública, v. 20, nº 14, 14 de março de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/14/o-coordenador-pedagogico-e-o-seu-papel-no-cotidiano-escolar.

SILVA, Tomaz T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

Publicado em 17 de novembro de 2020

Como citar este artigo (ABNT)

DAUMAS, Daniel. O currículo e a coordenação pedagógica: o desafio da aplicabilidade. Revista Educação Pública, v. 20, nº 44, 17 de novembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/44/o-curriculo-e-a-coordenacao-pedagogica-o-desafio-da-aplicabilidade

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.