Ensino de História e descolonização do currículo: considerações iniciais
Renata Belz Kruger
Graduada em Arquitetura e Urbanismo (UFRRJ), pós-graduada em Educação Tecnológica (CEFET/RJ), mestranda em História (Unifesspa)
O presente trabalho pretende delinear questões que se referem ao ensino de História e ao processo de descolonização do currículo. O ensino de História integra parte fundamental da formação de estudantes, uma vez que está ligada à política e à cultura e lida com as diferentes formas de ser e saber no mundo. O currículo é um território em constante disputa; por vezes acomoda práticas e pensamentos coloniais que precisam ser questionados. A descolonização dos currículos diz respeito fundamentalmente ao reconhecimento da diversidade do mundo, ao combate ao racismo e a ideias e pensamentos que não contemplem a heterogeneidade da sociedade.
Educação pública e currículo têm sido alvo de recorrentes debates no Brasil. O ensino de História nas escolas é tema de debates e reflexões imprescindíveis para a garantia de uma educação que promova a emancipação e a autonomia dos estudantes diante das contrariedades que emergem na sociedade. A ideia de um currículo oficial tem sido questionada, assim como a eleição de determinados conteúdos como legítimos e válidos para reprodução no ambiente escolar em detrimento de conhecimentos outros que frequentemente se referem à história do negro e dos povos indígenas. A descolonização dos currículos é um processo fundamental no sentido de amparar a emergência de uma educação reconheça a heterogeneidade da sociedade e as variadas formas de ser e saber no mundo.
Apple (2002) problematiza a ideia de um currículo oficial, visto que a educação está estreitamente ligada à política e à cultura e que o currículo nunca é neutro, ou seja, é produto de conflitos e parte de uma tradição seletiva em que um grupo estabelece qual é o conhecimento legítimo que deve ser reproduzido. As questões tratadas pelo autor são atuais no sentido de que é recorrente a discussão sobre a educação pública e o currículo no país. Ele explica que um currículo unificado em uma sociedade heterogênea não ampara a coesão, e sim faz surgir novas divisões. É oportuno destacar a importância de reconhecer as diferenças e igualdades que uma sociedade complexa e desigual compreende. Dessa forma, o currículo “deve ‘reconhecer as próprias raízes’ na cultura, na história e nos interesses sociais que lhe deram origem” (Apple, 2002, p. 76). O currículo não pode homogeneizar a cultura, a história e os interesses sociais. Como afirmam Paula e Coelho (2021), “a História é viva, é um conhecimento dinâmico; o currículo oficial a percebe como conteúdos estanques, ele é incoerente com a própria concepção do conhecimento histórico”. Um currículo democrático precisa reconhecer as diferenças tanto dos posicionamentos sociais quanto das relações de poder. Apple (2002) recorre a Foucault para explicar que, para entender o funcionamento do poder, basta olhar para as margens, ou seja, observar os conhecimentos e as lutas dos que foram relegados à condição de “os outros” pelos grupos poderosos da sociedade.
O ensino de História tem sido palco de controvérsias travadas sobre o passado, como aponta Abud (2017). A autora põe em evidência a relação entre o currículo e a política, de forma que os aspectos curriculares são faces representativas das políticas públicas educacionais. O currículo também é área de intervenção do poder político na educação, principalmente resultante de pressões de grupos hegemônicos da sociedade. Assim, não são raras as reformas curriculares, e a cada troca de grupo no poder são desenvolvidas novas propostas de modificações no sistema de ensino. Por vezes a educação é vista apenas como um instrumento político, e a História é apontada como a disciplina responsável pela formação política dos estudantes.
A autora destaca como mulheres, trabalhadores e minorias culturais permanecem ignorados pela história escolar em que o conhecimento tradicional é consolidado. Afrodescendentes e indígenas aparecem em tópicos específicos que são determinados com base na perspectiva da sociedade dominante. Assim, “encarada como conhecimento meramente formal, a História perde sua função mais expressiva como disciplina formadora de cidadãos” (Abud, 2017, p. 26).
Compreendemos aqui o currículo amparados nas considerações de Martins (2017), que parte do entendimento do currículo como construção social e artefato cultural, que compreende seleções que precisam ser analisadas em seu contexto de construção.
Abreu, Dantas e Mattos (2010) assinalam como as representações públicas do passado são manipuladas por diferentes agentes e como a memória da escravidão precisa ser problematizada. Os autores chamam a atenção para o trabalho do profissional de História em explicar como os acontecimentos do passado são lidos através do tempo e como memórias concorrentes se desenvolvem e originam identidades sociais coletivas e desafiam as histórias dos livros didáticos e os historiadores.
O colonialismo faz parte do processo educativo no Brasil desde a catequização praticada pelos jesuítas que aportaram no país. Gomes (2018) explica que o colonialismo fez parte do processo de construção da sociedade moderna e democrática, e a colonialidade, que é sua derivada, continua viva em textos didáticos, na cultura e em muitos aspectos da vida moderna. Maldonado Torres (2007, p. 131 apud Gomes, 2018, p. 249) assevera que “respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente”. Nesse sentido, o racismo brasileiro é desdobramento da colonialidade e do colonialismo presentes no imaginário e nas práticas sociais. É importante ressaltar que, na afirmação de Gomes (2018) sobre a ruptura epistemológica, política e social que deve se realizar pela presença negra nos espaços de poder e decisão, a descolonização precisa alcançar não apenas a produção do conhecimento, mas as estruturas sociais e de poder.
A colonialidade é resultado de uma imposição do poder e da dominação colonial que consegue atingir as estruturas subjetivas de um povo, penetrando na sua concepção de sujeito e se estendendo para a sociedade de tal maneira que, mesmo após o término do domínio colonial, as suas amarras persistem (Gomes, 2018, p. 251).
A colonialidade opera nos currículos, e como está enraizada pode passar despercebida mesmo por estudiosos da Educação. De acordo com Silva (1995 apud Gomes, 2018), o currículo não se resume à transmissão de conteúdo, mas se relaciona com experiências e práticas concretas que são construídas por sujeitos envolvidos nas relações de poder. O currículo pode ser visto em dois sentidos: em suas ações (o que fazemos) e em seus efeitos (o que ele nos faz). As narrativas do currículo podem representar grupos sociais de forma diferente, de forma que alguns são notadamente mais valorizados que outros e fixam noções de raça, classe, gênero e sexualidade.
A autora destaca que não se trata de uma tarefa fácil descolonizar o currículo. A colonialidade se traduz na incapacidade de uma abordagem que priorize e valorize as várias e diferentes leituras e interpretações da realidade, quando os conteúdos são selecionados por via única que não contempla a heterogeneidade da sociedade. O currículo é dinâmico e vivo, ou seja, é construído no dia a dia dos sujeitos da escola, e não somente na rígida seleção de conteúdo.
Gomes (2018) aborda ainda a descolonização dos currículos numa perspectiva negra e evidencia como a sociedade brasileira passou a tratar como natural o papel subalterno que o negro e o indígena ocupam nas narrativas. Esses estereótipos se articulam a serviço da ideologia do branqueamento, que se expande por meio do livro didático, com representações negativas do negro e positivas do branco. As representações do branco no livro didático são reflexo do pensamento moderno colonial que está enraizado nas relações e nas práticas sociais e educativas. Operar no sentido contrário desse pensamento é caminhar no sentido da descolonização do currículo, do conhecimento e do pensamento. No entanto, essa caminhada não é fácil. Exemplo disso é a Lei nº 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura africana e afro-brasileira nas escolas do país e envolveu lutas históricas e até hoje, para sua implementação, enfrenta desafios que vão desde as condições de infraestrutura até a negação, pela comunidade escolar, da importância de trabalhar história e cultura africana e afro-brasileira, como certifica Pereira (2006). Semelhantemente, a Lei nº 11.645/08, que tornou obrigatório o estudo de História e Cultura indígena nas escolas de Ensino Médio e Fundamental enfrenta desafios. Os povos indígenas frequentemente são tratados nas aulas de História de forma que os desloca a um passado distante e têm suas representações ligadas à primitividade, amparando a subalternização dos povos indígenas.
Nesse sentido, a formação inicial e continuada dos professores é fundamental para que estejam preparados para enfrentar os desafios da escola. Coelho e Coelho (2018) discorrem que a formação do professor deve considerar os conteúdos que dizem respeito ao saber de referência e os referentes ao domínio pedagógico, articulação que é fundamental para que a educação garanta a inclusão. A educação deve estar comprometida com valores democráticos, com as prioridades do mundo contemporâneo e com a aprendizagem de formas de participação social. São evidenciadas pelos autores as formas de racismo na escola, de invisibilidade do negro e do indígena e como as crianças negras e pardas são percebidas e tratadas no sistema escolar.
O cotidiano escolar compreende práticas racistas e discriminatórias que, como também ressalta Gomes (2018), são naturalizadas pela cultura brasileira. Portanto, saber formar é a chave para ter professores preparados e comprometidos com o combate ao racismo e para a consolidação de uma sociedade democrática (Coelho; Coelho, 2018).
A branquitude se relaciona ao privilégio que o branco ocupa nas variadas formas de representação. O branco detém acentuados privilégios dentro do currículo de História, e isso impacta na compreensão dos estudantes. Leão (2021) discorre sobre como é possível compreender a branquitude e expõe como ela se esconde no livro didático. Portanto, é fundamental tratar de questões raciais no ambiente escolar diante das assimetrias de representações e tentativas de homogeneização de práticas, culturas e saberes.
Nessa direção, Walsh (2013) explora práticas, caminhos e condições “outras” de pensamento e pedagogia que questionam a ideia da modernidade ocidental que se estabelece como única e inquestionável e o poder colonial ainda presente nas sociedades. A autora aponta para pedagogias que estimulam possibilidades de ser, sentir, existir, olhar e conhecer de forma diferente pedagogias que têm intenção descolonial. Não se trata da pedagogia no seu sentido instrumentalista, que a entende somente como meio de transmissão de saber na escola, mas sim da pedagogia a que Paulo Freire se refere, entendida como metodologia essencial dentro e para as lutas sociais e políticas. Entender as pedagogias decoloniais a que Walsh (2013) se dedica é fundamental para a potencialização de práticas educativas, sociais e políticas comprometidas com a descolonização do saber, do pensamento e da vida.
O ensino de História é fundamental no contexto de uma educação pública que busque valorizar as diferenças, compreender as heterogeneidades e reconhecer as variadas formas de conhecimento. É importante salientar, conforme Santos (2010, p. 54), que “em todo o mundo, não só existem diversas formas de conhecimento da matéria, sociedade, vida e espírito, como também muitos e diversos conceitos sobre o que conta como conhecimento e os critérios que podem ser usados para validá-lo”.
A descolonização do currículo, processo amplo e complexo, envolve o estímulo à problematização de pensamentos coloniais que persistem na vida escolar. A perspectiva decolonial permite que os subalternos emerjam à condição de protagonistas de suas próprias histórias, detentores de seus próprios saberes; torna também quem era espectador em ator ativo na História, como anunciara Fanon (1968).
Referências
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Publicado em 31 de maio de 2022
Como citar este artigo (ABNT)
KRUGER, Renata Belz. Ensino de História e descolonização do currículo: considerações iniciais. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 20, 31 de maio de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/20/ensino-de-historia-e-descolonizacao-do-curriculo-consideracoes-iniciais
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