Carta de uma criança da classe popular a sua professora pós-ensino remoto
Cristiane Barroso Dias
Pedagoga (UFF), especialista em Profissionais da Escola e Práticas Curriculares (UFF) e em Psicopedagogia (Unipli), orientadora educacional na rede municipal de Maricá/RJ, inspetora escolar (Seeduc/RJ)
Oi, querida professora! Como a senhora está? Tomara que esteja tudo bem!
Resolvi te escrever para dizer o que ando sentindo neste momento de minha vida.
Sou criança. Tenho sentimentos e muitos deles me fazem ser quem eu sou hoje e no futuro também. Quando nossa escola parou ano passado eu pensei que fosse rapidinho, como um sábado e domingo que passam e chega logo a segunda-feira e a gente se encontra novamente. Mas não foi bem assim. Demorou muito.
Sempre esperava a volta. Acordava e tinha todo o dia em casa. Encontrava nas paredes um ponto e ficava olhando... Na minha cabeça, imaginava mil coisas: a corrida com os amigos, o lanche debaixo da árvore, o jogo no pátio... Mas precisava esperar pela segunda-feira que não chegava nunca.
Demorou muito.
As noites pareciam mais longas. A senhora também sentia isso? Nossa família reunida no quarto, às vezes eu não conseguia dormir e ficava vendo todos dormirem e eu... nada. Será por quê? Será que era a falta do pique na escola?
Demorou muito mesmo.
Almoço e janta aconteciam ali no quarto. O que é o almoço e o que é a janta mesmo?
Mamãe preparava a comida e distribuía para a gente. Tinha dia que não queria comer, outros que comia muito porque a comida estava boa.
Todo dia a mesma coisa.
Sempre pensava que queria brincar, que queria correr, pular... Mas, sabe, professora, aqui em casa é um pouco pequeno, não tem muito espaço.
Os deveres que a senhora me passava, mamãe pegava lá na escola e eu fazia. Mamãe me ensinava. E quando ela tinha crédito no celular eu ouvia a sua voz e as fotos dos meus colegas. Aí me perguntava: “Por que tá demorando tanto?”.
Sinto sua falta. Sinto falta dos colegas. Sinto falta da escola.
Demorou muito, mas está passando. Mamãe disse que eu poderei voltar para a escola agora. Tô ansioso para te ver, para te ouvir e para viver tudo que eu sonhei quando olhava a parede lá de casa.
Pois eu sei que a escola é lugar de viver o sonho. E criança sonha muito, sabe, professora! Criança sonha com bola, com pique, com corrida, com flores, com doces e com abraços. Ah, sei que o sonho do abraço ainda não pode, porém sei que posso contar com você em todos os outros sonhos, porque nossa escola é linda, porque você é linda, seu cabelo é o mais lindo de todos (eu acho isso).
Não vejo a hora de fazer a fila com os colegas e ver a senhora vindo nos buscar, nos levar para nossa sala e organizar o material para nossa aula começar. De realizar as tarefas de Artes com cola e tesoura. De escutar as histórias contadas pelos autores dos livros através de sua voz. De sentar no refeitório e sentir o cheiro bom da comida que vem no meu prato. De escovar os dentes no lavatório do banheiro e voltar para minha sala dando saltos (nesse momento parece que tô voando). De esperar pela aula de Educação Física na quadra gigante da nossa escola (é muito gigante mesmo a quadra) e correr, correr, correr...
Então, professora, a segunda-feira chegou. A espera acabou.
Um beijo meu,
Sua criança
Publicado em 25 de janeiro de 2022
Como citar este artigo (ABNT)
DIAS, Cristiane Barroso. Carta de uma criança da classe popular a sua professora pós-ensino remoto. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 3, 25 de janeiro de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/3/carta-de-uma-crianca-da-classe-popular-a-sua-professora-pos-ensino-remoto
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1 Comentário sobre este artigo
Deixe seu comentárioBoa Tarde!! eu trabalho em uma editora e gostaria de falar com você autora para colocarmos o seu texto no material didático. Por favor me mandar mensagem por e-mail evelise.modro@cpb.com.br
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