Resistência e pandemia: os desafios de uma professora quilombola no enfrentamento à covid-19

Fábio Júnio Barbosa Santos

Licenciando em Pedagogia (IFNMG - Campus Salinas), bolsista do CNPq

Vitória Carolina Gomes Cardoso

Licencianda em Pedagogia (IFNMG - Campus Salinas), bolsista do CNPq

Gisélia Neres dos Santos Ferreira

Licencianda em Pedagogia (IFNMG - Campus Salinas), bolsista do CNPq

O surgimento e a ascensão da pandemia proveniente do vírus SARS-Cov-2, causador da covid-19, surpreendeu e provocou inúmeras alterações nos sistemas de saúde e no ensino de diversos países no mundo. No Brasil, o vírus se espalhou rapidamente e, assim como em outros países, uma das primeiras medidas tomadas pelo governo foi o fechamento das escolas durante quase dois anos.

Ainda que a maioria dos países tenha reaberto de forma integral ou mesmo que parcialmente as escolas busquem estratégias para não serem fechadas novamente, sabemos que em países com maior desigualdade social, a transição entre o completo fechamento escolar e a reabertura, mesmo que gradual, costuma ser um processo mais delicado. Não por acaso, Brasil e Índia são países que se configuram, respectivamente, como o primeiro e segundo lugares em número de contaminações diárias, até o momento, segundo o Johns Hopkins CSSE (2021).

Desse modo, analisar a situação educacional brasileira frente ao panorama pandêmico requer considerações de tamanho continental tendo em vista um país com peculiaridades atreladas a contextos e a regiões distintas. Portanto, fazem-se necessários estudos voltados não apenas à realidade nacional, mas às peculiaridades microssociais vinculadas às cidades, às escolas e aos sujeitos específicos.

Torna-se importante a compreensão das perspectivas comunitárias, dando vazão aos anseios e às percepções dos indivíduos diretamente vinculados às classes minoritárias. Dilemas ainda não percebidos e tratados nacionalmente ou sob recortes macrossociais, são fatores a serem observados nesse processo, visto que grupos etnicamente excluídos, como as populações indígenas e quilombolas ou outros perfis historicamente menos assistidos como o das mulheres negras, podem ressaltar de dentro do contexto atual pandêmico.

De Aqualtune a Djamila, foram e são muitas as contribuições de mulheres negras no antes e pós-abolição da escravatura no Brasil. Com o passar dos anos, embora a intensificação das lutas e dos ganhos de reconhecimento de pautas e demandas étnico-raciais tenham vislumbrado e reconhecido históricas de contemporâneas guerreiras da causa negra, no país, muitas dessas mulheres ainda passam despercebidas ou sem o devido reconhecimento prestado.

É nesse sentido que, de maneira proposital, o corrente trabalho pretende, ainda que de forma sucinta, refletir sobre o contexto e os dilemas da professora Rosária Costa. Para isso, optamos por uma abordagem qualitativa empregada a partir de entrevistas realizadas com a docente em períodos distintos, antes e durante a pandemia. O primeiro contato, que compreende a primeira entrevista voltada à trajetória da docente, ocorreu em outubro de 2019. A segunda entrevista, mais recente e focada nos problemas provenientes da pandemia, deu-se em julho de 2021. 

De acordo com Bogdan e Biklen (2003), a construção da pesquisa qualitativa configura-se a partir de cinco características básicas: ambiente natural, dados descritivos, preocupação com o processo, preocupação com o significado e processo de análise indutivo. Objetivamos conservar e evidenciar, aqui, as características supramencionadas, partindo da descrição histórica e contextualizada da vida da entrevistada, passando por suas perspectivas e considerações, mediante questionamentos apresentados, realizando interpretações sobre as respostas apresentadas e correlacionando-as a outros estudos que fundamentem e estruturem o processo geral de análise, levando-nos às conclusões apresentadas.

As falas da entrevistada foram obtidas mediante relatos orais e escritos durante diálogos. Suas falas serão usadas, portanto, com autorização prévia. Importante ressaltar que a todo momento a professora mostrou-se entusiasmada e disposta a colaborar com a pesquisa. Segundo Ribeiro,

A entrevista é a técnica mais pertinente quando o pesquisador quer obter informações a respeito do seu objeto, que permitam conhecer sobre atitudes, sentimentos e valores subjacentes ao comportamento, o que significa que se pode ir além das descrições das ações, incorporando novas fontes para a interpretação dos resultados pelos próprios entrevistadores (Ribeiro, 2008 p. 141).

Assim, como descrito por Ribeiro, o que propomos realizar neste artigo vai além da mera transcrição de fatos, pois buscamos instigar à reflexão conjunta, mediante análise e contextualização das experiências descritas pela entrevistada à medida que correlacionamos suas vivências a fatores presentes, dentro e fora de seu contexto microssocial.

Vida e trajetória docente

Nascida na comunidade quilombola de Córrego do Rocha, município pertencente à Chapada do Norte, região do médio Jequitinhonha (MG), Rosária sempre estudou em escolas públicas na cidade de Diamantina/MG. Na Escola Estadual Jason de Morais, situada em Berilo, iniciou e concluiu o Ensino Médio.

Graduada em Pedagogia e Educação Especial pela Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina, hoje, aos 51 anos, a professora dedica-se ao ensino de alunos com 6 a 18 anos, que tenham defasagens no aprendizado ou deficiências da rede municipal. Na rede estadual, empenha-se no ensino e no acompanhamento dos alunos especiais do 3º ano do Ensino Médio.

São 33 anos dedicados à docência e, atualmente, Rosária também atua como vice-presidente da Coquivale, Comissão das Comunidades Quilombolas do Vale do Jequitinhonha, onde trabalha pela unificação das comunidades quilombolas, na luta por políticas públicas de direito.

Para além da sua representatividade, a trajetória da professora chama a atenção pelo valor simbólico da sua atuação frente à Coquivale, não apenas para as comunidades quilombolas dentro e fora do Vale do Jequitinhonha, mas também para as lideranças negras femininas existentes no Brasil, uma vez que representam a maior parte da massa manifestante engajada nos movimentos, conforme afirmam Gomes, Faustino e Ferreira:

Quando se volta a pauta para a luta feminina quilombola, percebe-se que, nos movimentos realizados, mais de 70% dos participantes são mulheres. Por outro lado, apesar da presença feminina massiva em busca dos direitos do povo quilombola, há uma baixíssima representatividade de mulheres na política municipal, visto que é algo que se alastra em âmbito nacional (Gomes; Faustino; Ferreira, 2021).

Mesmo fora da política tradicional, Rosária resiste como remanescente quilombola e entende-se na condição de sujeito político, à medida que suas pautas e princípios transpassam o seu trabalho docente e a sua atuação na militância como defensora das comunidades quilombolas do Vale do Jequitinhonha. Nesse sentido, dispostos a compreender o início de sua trajetória na atuação docente, perguntamos à Rosária como se deu o início de sua atuação como professora:

Eu não cheguei a escolher ser professora, tudo teve início a partir de um convite que recebi, na época com 17 anos fui convidada a substituir uma outra profissional que estava sob licença de saúde na comunidade de Córrego do Rocha, desde então não mais parei, gostei de ser professora e assim permaneço na docência até hoje (Rosária, 2019).

O início da jornada docente de Rosária assemelha-se ao início de diversas outras professoras e professores residentes, atuantes em comunidades quilombolas, espalhadas pelo Brasil. Ainda hoje, existe um número significativo de profissionais que exercem docência sem terem concluído ao menos o Ensino Médio, estes são os chamados professores leigos, conforme afirma Carril:

Quanto à formação docente, existem 13.196 funções docentes na Educação Básica em áreas quilombolas [...]. Dos professores, 48,3% apresentam o nível superior, mas há ainda uma quantidade considerável que leciona apenas com ensino fundamental, médio e até com o fundamental incompleto. Nesse sentido, percebe-se a insuficiência da formação dos professores na área rural, onde estão mais de 90% dos estabelecimentos escolares quilombolas e 78,8% dessas matrículas, o que remete a processos mais longos de escolarização e enraizamento dos afrodescendentes (Carril, 2017, p. 554).

Essa abrupta introdução à docência justifica-se pela ausência de profissionais formados dispostos a atuarem nessas regiões, condição que se alastra, ainda hoje, no século XXI, somando-se a isso ainda outros fatores como a necessidade de criação de classes multisseriadas e as baixas condições de ensino, com baixos índices de desempenho e evolução escolar.

Dando continuidade à discussão, solicitamos que a professora nos contasse um pouco mais sobre a sua trajetória, com ênfase em sua identidade de mulher negra: 

Nunca foi fácil, a sociedade sempre espera o mínimo da mulher negra, tive que superar muitas barreiras e desconstruir muitas opiniões formadas sobre minha pessoa, fui muito rejeitada, era comum que me perguntassem se eu estava à procura de cargos como faxineira, quando, na verdade eu buscava oportunidade como professora (Rosária, 2019).

O relato de Rosária vai ao encontro das estatísticas nacionais, pois evidenciam a disparidade existente entre o número de pessoas negras, que se configuram como a maior parte da população brasileira, e o desproporcional ritmo de inclusão e engajamento de homens e mulheres negras no mercado de trabalho, conforme registra estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),

Assim como no total da população brasileira, as pessoas de cor ou raça preta ou parda constituem, também, a maior parte da força de trabalho no País. Em 2018, tal contingente correspondeu a 57,7 milhões de pessoas, ou seja, 25,2% a mais do que a população de cor ou raça branca na força de trabalho, que totalizava 46,1 milhões. Entretanto, em relação à população desocupada e à população subutilizada, que inclui, além dos desocupados, os subocupados e a força de trabalho potencial, as pessoas pretas ou pardas são substancialmente mais representadas – apesar de serem pouco mais da metade da força de trabalho (54,9%), elas formavam cerca de ⅔ dos desocupados (64,2%) e dos subutilizados (66,1%) na força de trabalho em 2018 (IBGE, 2018, p. 2).

Estatísticas como essas agravam-se quando consideramos momentos críticos como o atual. A pandemia da covid-19 não só elevou os índices de desemprego como trouxe novos desafios para o país em termos educacionais. Alunos e professores tiveram de adaptarem-se a novas rotinas frente a tentativa de um ensino em modalidade domiciliar, remoto.

Dilemas decorrentes da pandemia

Nesse sentido, realizamos com a professora a parte mais recente da pesquisa de modo a identificar suas experiências e percepções sobre a pandemia a partir da sua práxis docente. Solicitamos a ela que nos contasse sobre sua experiência com o ensino remoto e relatasse como é exercer a docência na educação infantil, nesse novo formato.

Ser docente na Educação Infantil é muito bom, porque a gente se torna criança de novo. Seja nas pinturas, nos desenhos, nas falas, no decorrer do tempo da aula, a gente está ali preocupado, mas quer cada vez aprender mais. Então é maravilhoso trabalhar com as crianças na educação infantil. Elas gostam de ouvir historinhas, de contar piadas, gostam de ir à biblioteca, fazer passeios ao redor da escola, é muito bom, muito, muito, muito mesmo, embora esteja sendo difícil e tenhamos que nos adaptar ao ensino remoto nesse período de pandemia (Rosária, 2021).

A ressalva realizada pela professora ao final de suas considerações a respeito do seu exercício na Educação Infantil apresenta a necessidade de salientar a sensibilidade envolta nesse momento pandêmico sob o qual a educação brasileira transita, antes mesmo de propor qualquer aprofundamento maior. Segundo Costa e Silva,

o ensino remoto é uma estratégia momentânea e não substitui o ensino presencial; tem como objetivo amenizar os prejuízos causados pelo fechamento das escolas, pois é uma prática que traz limitações e muitos estudantes não podem ter acesso a esse ensino, especialmente por estarem inseridos em uma área de vulnerabilidade (Costa e Silva, 2021, p. 6).

As considerações realizadas por Costa e Silva mostram-se assertivas e pertinentes, sobretudo quando as comparamos ao ambiente de atuação da professora Rosária. Embora o país, como um todo, vivencie o agravamento das dificuldades educacionais em decorrência do prolongamento pandêmico, estudantes e profissionais da educação, vinculados a regiões mais vulneráveis, ainda enfrentam dificuldades como defasagens no aprendizado ou deficiências.

Interessados em aprofundar a discussão, indagamos à professora sobre quais foram as suas principais práticas e como ela promoveu a aprendizagem das crianças, levando-se em conta a sua atuação antes e durante o período de ensino remoto:

Na prática, nós temos que trabalhar com os alunos da Educação Infantil tendo um olhar diferenciado na preparação das atividades. Adaptando atividades de acordo com o desenvolvimento do aluno e dos familiares que vão ajuda-lo nas atividades, sempre estando a par do que está acontecendo com a família, vendo como que estão fazendo as atividades, como que as crianças estão se desenvolvendo, então esse ensino remoto é mais preocupante, né? Muito preocupante. Não é que quando era presencial não era preocupante, mas com as aulas remotas é mais preocupante ainda, tanto para os professores, como para os pais dos alunos (Rosária, 2021).

Chama a atenção o fato de a professora mostrar-se preocupada em adaptar as atividades aos alunos considerando-se não apenas o seu desenvolvimento como, também, os seus familiares. A preocupação frisada por Rosária ampara-se nas estatísticas nacionais. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2019, a taxa de analfabetismo nacional caiu de 7,2%, em 2016, para 6,6%. No entanto, os dados mais recentes disponibilizados pelo Programa Brasil Quilombola (2013) apontam que 24,81% dos quilombolas não sabem ler e 74,73% das famílias quilombolas estão em situação de extrema pobreza, o que certamente tende a agravar-se durante a pandemia, ressaltando a necessidade de maiores cuidados e subsídios em relação ao acesso e ao incentivo à alfabetização e ao letramento dos remanescentes quilombolas.

Instigamos a professora a falar sobre maiores dificuldades que tenha encontrado no trabalho com crianças que necessitavam de um acompanhamento especial, por alguma necessidade específica ou por defasagens no aprendizado:

E ainda, sem falar que tem alunos que não tem nem os meios necessários para poder realizar as atividades, não tem um celular, se quer um computador. Então a gente tem que trabalhar atividades impressas com esses alunos, e para essas atividades impressas chegarem até os alunos? Não é fácil. Então nós temos que estar acompanhando, [...]. E quando a gente trabalha com alunos da zona rural? Eles não têm como fazer as atividades, as vezes não tem como pegar o Pet na escola, pois é difícil o acesso (Rosária, 2021).

Quando consideramos os aspectos de vulnerabilidade atrelados às comunidades quilombolas e rurais, de maneira geral, a situação apresenta-se grave. Em virtude do distanciamento e das dificuldades de acesso por lacunas de infraestrutura e financeiras, a ausência de internet ou de dispositivos de acesso à informação ainda é uma realidade para grande parte dos brasileiros. De acordo com a pesquisa TIC Domicílios, produzida pelo Centro Regional e Estudos para Desenvolvimento da Sociedade da Informação, o Cetic (2019), 46 milhões de brasileiros carecem de acesso à internet. Desses 45%, justificam a ausência de conexão como decorrente dos altos preços cobrados pela prestação do serviço e 37%, pela falta de dispositivos como celular, computador ou tablet.

Quando solicitada que avaliasse esse período de pandemia ocasionado pela covid-19, a professora afirma: “Nesse tempo de pandemia podemos avaliar que o ensino está sendo difícil para se adaptar, pois temos que lidar com as novas dificuldades e ferramentas, né? Me refiro às tecnologias” (Rosária, 2021).

Por fim, perguntamos à professora quais foram os principais recursos tecnológicos utilizados por ela na condução dos alunos durante a aplicação do ensino remoto:

Os recursos usados para trabalhar agora neste momento de pandemia são a internet, o notebook, o celular, a gente usa o Google Meet e o Classroom, mas nem todos os alunos sabem lidar com esses sistemas, não sabem trabalhar com a internet, e tem lugares que nem a internet chega. Então é difícil, não está fácil, eu volto a repetir, essa situação de ensino remoto, principalmente na zona rural, onde não tem o acesso à internet é extremamente complicada (Rosária, 2021).

Visto que a pandemia tende a ressaltar as dificuldades de alunos, pais e professores no uso das tecnologias, precisamos lembrar que esse não é um problema recente. O agravamento atual dá-se pela ausência de investimentos e estratégias que além do combate ao analfabetismo funcional deveriam visar ao analfabetismo digital. Segundo o relatório anual do The Inclusive Internet Index (2021), o Brasil ocupa a posição 69 entre os 100 países avaliados no índice de prontidão para a internet. O estudo atesta que essa posição é desfavorável em decorrência ao baixo nível de alfabetização digital.

Não obstante, a pesquisa intitulada Trabalho docente em tempos de pandemia (2020), realizada pelo Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente (Gestrado/UFMG) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), aponta que 89% dos professores não tinham experiência anterior à pandemia na condução de aulas remotas e 40% dos entrevistados seguiam sem qualquer tipo de treinamento até o momento da aplicação da pesquisa, em julho de 2020. Além disso, 21% dos entrevistados alegaram considerar difícil ou muito difícil lidar com as tecnologias digitais.

É impossível não levantar críticas a um estado que em tempos de globalização e digitalização constante dos processos, pouco se preocupa com a integração educacional e com o acesso das massas às distintas possibilidades de ensino. Torna-se mais sério quando se percebe que o avanço pandêmico pouco refletiu, no governo, em ações em prol da integração digital e do ressarcimento de lacunas deixadas por gestores anteriores. Observa-se que nem mesmo a pandemia foi capaz de viabilizar o direcionamento de recursos e de treinamentos adequados à classe docente, tampouco aos alunos vinculados à rede pública de ensino.

Ao longo de toda a entrevista, a professora ressaltou quão difícil foi lidar com a desigualdade de acesso e de uso das tecnologias necessárias para o acompanhamento das aulas remotas por parte dos alunos. Uma triste realidade, no entanto, já esperada tendo-se em vista as especificidades da localidade onde a professora atua, historicamente conhecida como a terceira região mais habitada por comunidades quilombolas do país (EBC, 2017) e a mais pobre do Estado de Minas Gerais, conforme ressalta Henriques (2018):

Se você fizer uma rápida pesquisa no Google sobre Vale do Jequitinhonha, vai encontrar uma região com os menores índices de desenvolvimento do Estado de Minas Gerais. Também vai perceber que grande parte de sua população vive em extrema pobreza. Verá fotos de seu meio ambiente, sistematicamente agredido pelas atividade mineradoras, de carvoaria e o uso indiscriminado do fogo pela agricultura familiar. É por tudo isso que o Jequitinhonha também é conhecido por muitos como o Vale da pobreza.

O Vale do Jequitinhonha, ainda que marcado por uma narrativa midiática que ressalta, com frequência, suas carências em detrimento das suas potencialidades, possui inúmeros atributos. Esses atributos fazem do Vale uma região única no mundo, para além de suas conhecidas possibilidades naturais inexploradas ou em exploração. Jequitinhonha conta com um patrimônio histórico-cultural ímpar e, sobretudo, coleciona histórias e narrativas dignas de serem ouvidas, advindas de um povo caro, com muito a dizer, conforme recita o poeta Gonzaga Medeiros:

Nós somos o Vale,
nós valemos
mais pelo que somos,
menos pelo que temos.
Valendo assim e assim sendo
sempre valeremos
Em nós o TER perdeu o verbo,
o SER tem mais valor,
é mais verbal,
é o valor que temos
e valendo assim e assim sendo
sempre valeremos (Almeida et al., 1985, p. 15).

A partir das perspectivas da professora Rosária, as experiências compartilhadas representam apenas algumas das muitas histórias que, por vezes, deixam de ser contadas. Oriundas de uma comunidade materialmente pobre, mas culturalmente rica - seus anseios e aspirações, advindos de falas simples e de seu carisma e suas peculiaridades, típicos de um povo que valoriza o ser no lugar do ter, conforme os versos de Gonzaga – as histórias ressaltam detalhes de um Brasil pouco cuidado pelos seus.

Importante destacar o senso de pertencimento de Rosária assim como a sua preocupação na tentativa de preservar suas tradições, em afirmar seu valor como mulher negra e o valor do seu povo, sua comunidade quilombola. Ademais, sobre o novo contexto de pandemia, a professora ressalta, constantemente, sua preocupação em suprir, ainda que minimamente, os espaços deixados pelo legado da desigualdade social, frutos de uma educação pouco inclusiva.

Conclusão

O novo contexto de pandemia mostra-se uma novidade a todos os países, com fortes consequências nos países mais pobres, emergentes e despreparados. A desigualdade social brasileira confirma a necessidade de cuidados especificamente voltados aos grupos mais vulneráveis, como é o caso das comunidades quilombolas. Narrativas experienciadas por sujeitos como a professora Rosária Costa demonstram aspectos educacionais delicados e ainda carentes de atenção e tratativa governamental.

Acreditamos serem urgentes as necessidades de políticas públicas, especificamente direcionadas às comunidades quilombolas, que levem em consideração as características de regiões notadamente pobres, como é o caso do Vale do Jequitinhonha, onde o agravamento pandêmico se intensifica e revela um histórico de abandono estatal.

Fazem-se necessários investimentos que extrapolem a esfera material, oferecendo, para além de condições de estudo e trabalho, uma valorização cultural em proporções que viabilizem um reconhecimento comunitário e impulsionem as tradições de povos por vezes fadados à miséria financeira ou ao êxodo.

Por fim, torna-se imperioso afirmar a importância de trabalhos como o da professora Rosária, seja à frente da sala de aula ou como integrante de organizações prudentes como a Coquivale. Trabalhos como esses, da Rosária, denotam uma militância socialmente valida e coesa, embora pouco ouvida ou midiaticamente substituída por grupos caricatos que pouco têm a colaborar com a importância atribuída à causa. 

Referências

ALMEIDA, Wesley P. et. al. Jequitinhonha: antologia poética. Belo Horizonte, 1985.

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CETIC. TIC Domicílios – 2019. Brasil, 2019. Disponível em: https://cetic.br/pt/pesquisa/domicilios/indicadores/. Acesso em: 15 jul. 2021.

COSTA, José Eliton da Silva; SILVA, João Paulo da. Educação na comunidade quilombola de Serra Feia, em Cacimbas/PB, em meio à pandemia da covid-19. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 21, nº 20, 1 de junho de 2021. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/21/20/educacao-na-comunidade-quilombola-de-serra-feia-em-cacimbaspb-em-meio-a-pandemia-da-covid-19. Acesso em: 12 jul. 2021.

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Publicado em 08 de março de 2022

Como citar este artigo (ABNT)

SANTOS, Fábio Júnio Barbosa; CARDOSO, Vitória Carolina Gomes; FERREIRA, Gisélia Neres dos Santos. Resistência e pandemia: os desafios de uma professora quilombola no enfrentamento à covid-19. Revista Educação Pública, v. 22, nº 8, 8 de março de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/8/resistencia-e-pandemia-os-desafios-de-uma-professora-quilombola-no-enfrentamento-a-covid-19

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