Um contato com a África por meio do gênero literário conto no Ensino Fundamental

Francisco Rangel dos Santos Sá Lima

Licenciado em Letras-Língua Portuguesa (Unilab) e em Pedagogia (UniBF), especialista em Retórica e Oratória em Língua Portuguesa (UniBF), mestrando em Ciências da Linguagem (UERN), professor de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental da rede municipal de Canindé/CE

Libânia Fernandes Cá

Licenciada em Letras-Língua Portuguesa (Unilab), especialista em Igualdade de Gênero (UMAR), mestranda em Estudos sobre as Mulheres (UNL)

Camila Maria Marques Peixoto

Doutora e mestre em Linguística (UFC), professora da Unilab

Este texto tem o objetivo de compartilhar a experiência na disciplina Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa I do curso de Licenciatura em Letras/Língua Portuguesa da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Por meio dessa experiência, evidenciamos o cotidiano escolar e desenvolvemos atividades relacionadas ao gênero literário conto, atuando na função de estagiários regentes em uma turma do 6º ano de escola pública da rede municipal de Redenção/CE, no final do ano de 2016.

Por conta de suas particularidades, a supramencionada universidade favorece aos estudantes um maior contato com teóricos e escritores africanos e afro-brasileiros. Especificamente no Curso de Letras, tivemos acesso a muitas leituras e discussões acerca da importância de trabalharmos a literatura de escritores negros na escola. No entanto, embora as escolas sejam orientadas a promover atividades relacionadas à valorização do legado histórico-cultural africano e afrodescendente por conta do advento da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, no que tange ao ensino de Língua Portuguesa (LP), muito ainda precisa ser feito em relação à abordagem da Literatura Africana em sala de aula, pois muitas vezes ela é desconhecida das crianças do Ensino Fundamental, bem como dos adolescentes do Ensino Médio.

Atualmente, depois de alguns anos como professores na Educação Básica e pública, a realidade nos permite admitir que nos surpreendemos positivamente quando nossos alunos conhecem ao menos alguns escritores brasileiros. Mas o que fazer quando o livro didático (LD) não aborda ou aborda insuficientemente a Literatura Africana? Almeida (2017, p. 133), por exemplo, constatou que “ainda é um desafio a inserção da literatura africana de expressão portuguesa nos livros didáticos, tanto para autores quanto para editores”. Na condição de estagiários regentes, observamos pouca inserção da Literatura Africana no LD do 6º ano e isso nos motivou a desenvolver um trabalho voltado para a leitura de contos africanos de expressão portuguesa, com vistas ao seu domínio e à sua produção, em virtude de sabermos que o LD é a principal fonte de leitura dos alunos e o que consta ou não no material didático pode ser definidor daquilo que os alunos terão a oportunidade de conhecer ou não no desenvolvimento de seu letramento literário.

Como destacam Dalvi et al. (2013, p. 73), “as leituras realizadas pelos alunos fora da sala de aula [...] apresentam alto grau de dependência em relação às práticas de leitura escolares”, tornando o LD o seu principal instrumento de leitura, demandando a seleção de bons autores ou obras não representadas pelo LD adotado pela escola. Porém, entendemos que a atividade docente, na escola pública, é marcada pela sobrecarga de trabalho, dificultando a produção, por parte do professor, de materiais didáticos complementares, conforme destacaram Lima et al. (2023) em recente publicação acerca da experiência em estágio de regência em uma escola de Ensino Médio da rede estadual, em Redenção/CE (2017).

O estagiário, diferentemente do professor regente da turma, tendo tempo de desenvolver um plano de atuação orientado pela professora da instituição superior de ensino e dedicado às leituras e ao planejamento das aulas, com o intuito de serem criativas, tem a vantagem de poder auxiliar de forma mais pontual nas possíveis lacunas encontradas nos livros didáticos, por meio das suas pesquisas (Lima et al., 2023). Partindo da premissa de que o papel do professor deve ser o de estar sempre atento à pesquisa e ao planejamento de suas aulas, conforme as necessidades e as dificuldades dos seus alunos, não se pode admitir que o LD ocupe o ponto central, cabendo ao docente o papel de reprodutor ou “gerenciador” da aula (Rojo, 2013). Esse papel central ocupado pelo LD em sala de aula prejudica a atuação docente no trabalho de organização do contexto educacional uma vez que, como afirma Almeida (2017, p. 133), “o livro didático é um auxiliar e não um determinante das aulas”.

Sendo assim, o estagiário, desde a sua formação básica, precisa construir sua trajetória profissional pautada em bases teóricas sólidas e na reflexão sobre o seu agir profissional para que possa atuar de forma mais autônoma em relação ao planejamento proposto pelo autor do LD. Embora haja uma tendência de o currículo escolar seguir o sumário dos LD, o professor jamais pode permitir o cerceamento da sua autonomia, adquirida por meio dos seus estudos e dos seus planejamentos. Na verdade, o professor é quem melhor pode diagnosticar o que deve ser aprendido pelos estudantes, de que forma e quando isso ocorrerá. Isso não significa uma negligência ao currículo escolar que apresenta os conteúdos básicos previstos para cada ano e deve ser considerado, mas trata-se, sobremaneira, de uma questão de bom senso e, principalmente, de responsabilidade ética por parte do professor, com base na sua formação acadêmica e profissional.

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (Brasil, 1998), documento que orientou pedagogicamente nossa atuação escolar em 2016, um dos objetivos gerais da disciplina de LP para o Fundamental consiste em possibilitar ao aluno a “reafirmação de sua identidade pessoal e social” (Brasil, 1998, p. 33). Com o entendimento dessa responsabilidade atribuída ao professor de LP, podemos indagar: como ajudar a reafirmar a identidade do nosso aluno sem que ele se sinta representado em suas leituras escolares? Essa questão surge da nossa observação em relação ao pouco espaço da Literatura Africana e afrodescendente nas escolas em que este estudo foi contextualizado.  

Como afirma Antunes (2010, p. 56), as leituras proporcionadas pelos textos representam maneiras de compreender “as representações, as visões de mundo, as crenças”, com as quais podemos nos identificar ou não. Nesse sentido, em nosso estágio de regência, objetivamos propiciar o contato, por meio da Literatura, com o imaginário, a estética literária e a identidade africanas, desmistificando estereótipos e favorecendo o reconhecimento da identidade do próprio aluno, que foi levado a entender que a África também faz parte da constituição étnica e cultural do Brasil. Valemo-nos, assim, do conceito de negritude. O termo negritude surgiu pela primeira vez no poema lírico Diário de retorno ao país natal, do antilhano da Martinica Aimé Césaire e “foi cunhado para apreender a totalidade do mundo negro fundada na ideia de solidariedade racial”, subtraindo-lhe a conotação depreciativa (Hernandez, 2008, p. 151). Recorremos, desse modo, aos valores culturais negros e à sabedoria hereditária africana, por meio dos contos, como maneira de reafirmar identidades negligenciadas.

As atividades de leitura, além de promoverem a reflexão e a criticidade em relação às culturas africanas de expressão portuguesa, foram realizadas de modo que os alunos assimilassem as regularidades e as particularidades do gênero conto, com vistas ao desenvolvimento de um projeto de classe inserido em uma situação real de interação. Na prática com os alunos, utilizamos o procedimento de sequência didática, proposto por Dolz, Noverraz e Schnewly (2004), o qual será apresentado na seção a seguir. Em seguida, descreveremos como se deram as aulas ministradas para a turma de 6º ano, relacionadas ao gênero literário conto e, por fim, expomos nossas últimas ponderações.

Metodologia

Para desenvolvermos um trabalho voltado para a leitura, o domínio e a produção textual do gênero conto em uma escola pública, seguimos uma sequência didática (SD), um procedimento proposto pelos pesquisadores genebrianos Dolz, Noverraz e Schnewly (2004), com adaptações na construção de nossa intervenção na sala de aula. Acreditamos que as propostas didático-pedagógicas servem para orientar atividades, mas não as nortear. Desde cedo, os futuros professores devem exercer a sua própria autonomia e criatividade.

A SD, entendida como “um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito” (Dolz; Noverraz; Schnewly, 2004, p. 82), tem a finalidade de ajudar o aluno a dominar um gênero sobre o qual ele ainda não tem conhecimento ou sobre o qual o seu entendimento é insuficiente. O objetivo maior de uma SD é possibilitar, através das intervenções do professor, uma apropriação de características constitutivas do gênero alvo. Na sua constituição, basicamente, compreende quatro etapas, a saber: apresentação da situação inicial; produção inicial; módulos; e produção final.

Na apresentação da situação inicial é exposto, explicitamente, um projeto de classe que será de fato realizado por eles em torno de um gênero textual. Nessa etapa, o professor evidencia o horizonte de expectativa em relação à produção do gênero, com base nos elementos do contexto de produção. Ou seja, os estudantes são convidados a fazer parte de uma situação concreta de comunicação, que envolve a definição prévia de um gênero, a escolha do público-alvo a que se destina a produção (alunos de outras turmas, pais, pessoas da comunidade etc.) e a forma da produção, como gravação, escrita, vídeo, representação teatral etc. (Dolz; Noverraz; Schnewly, 2004, p. 101).

Na produção inicial, após o primeiro contato com um texto representativo do gênero textual mediado pelo professor, o aluno tenta produzir, por meio das instruções fornecidas, o seu texto inicial. Esse é um momento oportuno para que, de um lado, o professor possa diagnosticar as principais dificuldades do aluno em relação ao domínio do gênero, bem como as concernentes à própria escrita (vocabulário, ortografia, acentuação, coesão, coerência etc.) e, de outro lado, o estudante possa se conscientizar a respeito das suas próprias limitações e/ou facilidades. Por meio da observação do professor são evidenciados os pontos fortes e os pontos fracos da turma de uma forma geral que servirão de diagnóstico para a produção dos módulos.

De posse do diagnóstico obtido por meio das produções iniciais dos estudantes, o professor pode, então, organizar os módulos que visam a aprimorar ou a desenvolver apenas aquilo que é considerado de fato necessário. Por meio deles, os alunos estudam aspectos específicos relacionados ao gênero, de maneira prática, realizando atividades individuais e coletivas. Não há uma fórmula para a etapa referente aos módulos. O número e os tipos de atividades a serem realizadas, bem como as formas pelas quais o professor as desenvolverá, dependem do seu diagnóstico, das suas pesquisas, do seu planejamento e da sua criatividade. No entanto, Dolz, Noverraz e Schnewly (2004, p. 105) sugerem atividades como

reorganizar o conteúdo de uma descrição narrativa para um texto explicativo, inserir uma parte que falta num dado texto, revisar um texto em função de critérios bem definidos, elaborar refutações encadeadas ou a partir de uma resposta dada, encadear com uma questão.

Por sua vez, a produção final trata-se da culminância do projeto de classe acordado com os alunos e desenvolvido de maneira progressiva: pela última vez os alunos produzem o(s) texto(s) que será(ão) lido(s), expostos(s) ou apresentado(s) aos destinatários previamente definidos pelo professor e pela turma. A produção representa para o aluno o resultado do seu paulatino domínio do gênero textual, permitindo-lhe comparar o avanço percebido no seu texto final com a sua primeira representação no seu texto inicial, notando, assim, o que foi aprendido e o que ainda precisa melhorar. Para o professor, a produção final pode representar um momento de avaliação do tipo somativo, segundo Dolz, Noverraz e Schnewly (2004, p. 107), desde que os alunos estejam a par dos critérios de avaliação utilizados pelo professor, assentados no que de fato foi estudado e trabalhado durante a aplicação progressiva da SD.

Devidamente exposto, o procedimento orientou a nossa intervenção docente. Na seção a seguir, o descreveremos e apresentaremos como ele se deu, na prática, com a adoção desse procedimento e as adaptações a que procedemos. Ressalvamos que a seleção do gênero conto se deu por conta de ele ser um dos gêneros literários sugeridos para a prática de escuta e leitura de textos e para a prática de produção de textos orais e escritos no currículo do Ensino Fundamental, conforme os PCN (Brasil, 1998). No entanto, à época da nossa atuação na escola, o gênero ainda não havia sido estudado de forma sistemática.

Relato da intervenção docente

Nesta seção, descrevemos as atividades desenvolvidas relacionadas ao gênero literário conto com os estudantes do 6º ano, na disciplina de Língua Portuguesa, em cada um dos seis dias de aplicação da SD. Antes da descrição de cada um dos encontros, são apresentados os planos de aula correspondentes.

Primeiro dia de regência

Plano de aula elaborado

Data: 13/10/2016

Objetivos:  Dar a conhecer aos alunos o gênero conto; apresentar o projeto de classe.

Conteúdo: Conto A guerra dos palhaços, do escritor moçambicano Mia Couto.

Materiais: Impressos do conto; lousa.

Estratégias: Predições; leitura silenciosa; leitura em voz alta; formulação de hipóteses; debate; trabalho em grupo.

Atividade: Dramatização de uma parte do conto/retextualização teatral (produção inicial).

Iniciamos a aula apresentando o objetivo do estágio, o nosso plano de atuação e a duração da regência. Em seguida, entregamos o conto A guerra dos palhaços impresso. Valemo-nos da estratégia de predição, a partir do título do texto, indagando: “Do que será que essa história tratará?”. Perguntamos aos alunos se eles já conheciam o gênero conto. Levantamos uma discussão prévia sobre o que é um conto e por que as pessoas contam histórias. Após ouvirmos as hipóteses dos alunos a respeito, explicamos, de maneira acessível, o que é o gênero, como ele se manifesta e destacamos algumas de suas principais características que obedecem a certas categorias narrativas, conforme explicita Gouveia (2011).

Posteriormente, efetuamos a leitura em voz alta do texto, dando ênfase à entonação para despertar a atenção dos estudantes, os quais deviam acompanhar a leitura de forma silenciosa. O conto escolhido por nós obedeceu a critérios previamente definidos: deveria ser um conto provocante, com enredo que chamasse a atenção imediata dos alunos, cuja história tivesse personagens crianças e temática voltada ao público infantojuvenil.

Durante a leitura, fizemos pausas constantes para explicarmos o significado de determinadas palavras e expressões aos alunos. Desse modo, recorremos à Sociolinguística, Ciência na qual nos embasamos, atentando, a todo momento, para a variação inerente às diversas variedades urbanas de prestígio do português brasileiro (Faraco, 2008). Na mediação da leitura, lemos para os alunos de maneira pausada, sempre explicando o significado das palavras desconhecidas, típicas do português guineense. Essas explicações foram fundamentais para a “tradução” dessa variedade que, à primeira vista, parecia estranha aos alunos, mas rapidamente eles foram se familiarizando e se interessando pelo conto em questão. Enquanto líamos, explorando a dramaticidade da história, ao mesmo tempo tivemos o objetivo de trazer um texto que servisse de modelo aos alunos que não sabem como ler de forma adequada em voz alta, ignorando as ênfases, as pausas, a dramaticidade e a dicção.

Ainda demos certa atenção aos tempos verbais predominantes no texto, que, não ingenuamente, obedecem à estrutura do próprio gênero, tais como as formas pretéritas, fundamentais para a localização temporal dos eventos narrados. Ao término da leitura, amparados no modelo interacionista de leitura (Circurel, 1991 apud Leurquin, 2001), solicitamos aos alunos a sua interpretação global, mas focando no final surpreendente: “Por que os palhaços provocaram o conflito que culminou na destruição da cidade?”. Levados a refletir sobre isso, negociamos uma interpretação coletiva, gerando um conflito em seus esquemas mentais de forma que a nova significação alcançada se tornou mais proveitosa, porquanto construída com as intervenções de todos, coerente com os sentidos pretendidos pelo texto.

Em seguida, dispusemos os alunos em grupos de cinco membros, que, ao cabo de 50 minutos de socialização, reforçando o trabalho coletivo entre os discentes, deveriam encenar uma determinada parte da história, na qual uma criança questiona os pais a respeito do que se sucedia entre os palhaços. No entanto, as interpretações teatrais deveriam dar uma resposta diferente da recebida pela criança, conferindo-lhe uma nova interpretação. No conto, ela é convencida a crer que se trata de uma brincadeira a briga que culmina do declínio de toda uma cidade.

As cinco equipes de cinco alunos sentiram-se bastante motivadas em participar da tarefa, uma vez que, por meio da atribuição de novos significados ao texto, puderam interagir com ele de maneira divertida. Após essa lúdica tarefa, os alunos foram informados acerca do projeto de classe que consistiria na produção de um conto coletivo, escrito em forma de cartaz, que seria afixado em um flanelógrafo da escola, lido por todos os alunos e professores das outras turmas.

Em relação ao diagnóstico obtido por meio desse primeiro contato com os alunos, observamos que as principais dificuldades diziam respeito, principalmente, à compreensão acerca das categorias da narrativa e da própria estrutura do gênero conto literário, à assimilação do pretérito-mais-que-perfeito em sua forma simples e ao entendimento das figuras de linguagem. Assim, mesmo sem um texto escrito, mas por meio das discussões promovidas com os alunos, da expressão de suas dúvidas e de suas respostas aos questionamentos, pudemos elencar as dificuldades observadas. A adaptação foi essencial para conquistar a adesão da turma às aulas temporárias, expondo livremente suas opiniões acerca do texto e o seu entendimento de parte dele, de forma criativa e inovadora, por meio de uma dramatização.

Segundo dia de regência

Plano de aula elaborado

Data: 1/11/2016

Objetivos: Aprofundar o conhecimento acerca das categorias narrativas; introduzir os alunos à estrutura do conto.

Conteúdo: Conto Djênia, da escritora guineense Odete Semedo.

Materiais: Impressos do conto; lousa.

Estratégias: Questionamentos individuais e coletivos; leitura silenciosa; leitura em voz alta; predição; sistematização na lousa.

Atividade: Responder, oralmente, a questionamentos acerca das categorias da narrativa (módulo I).

Iniciamos a aula com a apresentação do novo conto, Djênia, de Odete Semedo (que conta uma história da tradição oral, bastante conhecida em Guiné Bissau), recapitulando o conto anterior: “Que voz narra os acontecimentos no conto de Mia Couto? Onde se passa a história? Quais as personagens? Quando acontece?”. Dessa forma, fizemos uma introdução às categorias da narrativa (narrador, personagem, espaço, tempo, enredo), embasando-nos em Gouveia (2011) e recorrendo ao texto conhecido na aula anterior.

Findado o momento introdutório, escrevemos o nome do conto da aula na lousa e indagamos aos alunos suas hipóteses a respeito da trama. Em seguida, os alunos receberam os contos impressos e leram-no, silenciosamente e em voz alta, o que demandou a participação de alguns voluntários. A todo o momento, houve pausas dedicadas à explicação dos acontecimentos narrados, bem como das palavras desconhecidas. Devido à explicação acerca do repertório cultural e linguístico inerentes ao texto, com a presença de palavras típicas do crioulo guineense, a atividade se tornou muito produtiva, pois despertou a curiosidade dos alunos sobre universos imaginários diferentes daqueles com os quais estão acostumados, sendo chamados à atenção para a importância da oralidade e da mitologia na cultura africana.

Por conta da estratégia da predição utilizada no decorrer da leitura, por meio de questionamentos como: “O que será que acontecerá a seguir? Será que Andreza é mesmo quem demonstra ser? O que será que a velha Kdama Pesangue quis dizer com esta espécie de profecia?”, os alunos se sentiram motivados a continuar a leitura, com o intuito de confirmar suas hipóteses. Por meio dos questionamentos relacionados ao tipo de narrador, às personagens, ao tempo, ao lugar em que ocorreu a narrativa e aos acontecimentos, pudemos trabalhar com os estudantes as suas categorias para que entendessem que elas devem estar definidas e presentes no texto lido.

Terceiro dia de regência

Plano de aula elaborado

Data: 3/11/2016

Objetivos: Revisar as categorias narrativas; introduzir os alunos à estrutura do gênero conto.

Conteúdo: Conto Djênia, da escritora guineense Odete Semedo.

Materiais: Impressos do conto; lousa.

Estratégias: Predição; leitura silenciosa; leitura em voz alta; sistematização na lousa.

Atividade: Responder, oralmente, a questionamentos acerca da estrutura do gênero conto (módulo II).

Para darmos continuidade à leitura e discussão do conto da aula anterior, haja vista sua extensão, fizemos questionamentos acerca das suas categorias narrativas e de como elas se fazem presentes no texto. Em seguida, os alunos foram solicitados a depreender o conflito do conto, sendo lançados à reflexão sobre o motivo de Djênia ter passado por uma experiência tão triste: “O que você faria no lugar de Djênia? Qual o destino que você daria à Andreza, de maneira ética?”.

Sempre atentos às dúvidas dos alunos sobre os elementos da narrativa e as formas verbais mais complexas presentes no conto - como o pretérito mais-que-perfeito em sua forma simples, restrito à escrita monitorada - observamos que eles puderam fazer associações entre a variedade linguística, trazida de casa, e a variedade urbana de prestígio guineense, abordada de forma que não houvesse um fosso entre elas.  Ao final da leitura, procedemos à discussão da estrutura do texto, sendo identificadas a situação inicial, o conflito, o clímax e o desfecho, retornando às partes do conto sinalizadoras destas regularidades estruturais, sistematizando a estrutura na lousa.

Nesse momento final de leitura de um conto africano de maior extensão, os alunos se sentiram motivados por conta do interesse de saber se suas hipóteses iniciais a respeito do caráter das personagens, principalmente de Andreza. O destino trágico da personagem foi comemorado. No entanto, puderam realizar, pela primeira vez em suas vidas, uma discussão sobre a associação da Literatura a uma questão de ética: “Paga-se o mal com o mal? De que outra maneira Andreza pagaria por sua maldade sem ter de ser açoitada e transformada em um bicho do mato? Esse realmente deveria ser seu único destino?”. 

Em suma, o trabalho com o conto foi oportuno, pois propiciou um contato com a estética, a cultura e o imaginário guineenses, rompendo com arquétipos eurocêntricos que geralmente caracterizam não só as personagens, mas os mundos fictícios nos quais ocorrem essas narrativas.

Quarto dia de regência

Plano de aula elaborado

Data: 8/11/2016

Objetivos: Discutir sobre os tempos verbais presentes no gênero conto; discutir sobre a presença das figuras de linguagem presentes no conto.

Conteúdo: Conto História mal contada, do escritor guineense Olonkó.

Material: Impressos do conto; lousa.

Estratégias: Predição; Questionamentos individuais e coletivos; leitura em voz alta; sistematização de informações na lousa.

Atividade: Substituir algumas figuras de linguagem típicas do português guineense por figuras de linguagem correspondentes no português brasileiro (módulo III).

A aula foi iniciada com reflexão a respeito do título do conto escrito na lousa: “Sobre o que trata essa nova história? O que seria uma história mal contada?”. Após ouvirmos as hipóteses dos estudantes e as socializarmos, partimos para a leitura dos primeiros parágrafos, que, em seguida, contou com a colaboração de alguns alunos voluntários para a continuação.

Após a leitura final do conto de Olonkó, os alunos foram chamados à atenção para o novo tipo de voz narrativa presente no conto, diferente dos contos anteriores: “O que diferencia essa voz das demais já conhecidas por nós?”. Ao refletirem sobre a predominância do narrador em terceira pessoa nos contos já conhecidos, os alunos perceberam a diferença no conto em questão daquele em que predomina um narrador em primeira pessoa. Para chegar a essa conclusão, foram essenciais perguntas norteadoras como: “Em que pessoa são conjugados os verbos utilizados na voz do narrador?”. Assim, também aproveitamos a oportunidade para relembrarmos os tempos verbais predominantes em textos narrativos, valendo-nos dos exemplos encontrados no próprio conto (pretérito perfeito, imperfeito e mais-que-perfeito).

Após a compreensão global do texto, procedemos à discussão acerca das figuras de linguagem presentes e sua corroboração para a introdução de novos sentidos à história, bem como para o caráter conotativo da linguagem literária. Desse modo, os conceitos de denotação e conotação também foram evocados. Apesar de usarem as figuras de linguagem no cotidiano, a turma nunca tinha estudado sobre o assunto, o que despertou a atenção e a curiosidade. Assim, os estudantes foram convidados à reflexão a respeito das figuras encontradas: “Que novos sentidos adquiriu a história por meio dessa figura? Qual a função dela para prender a atenção do leitor? Você usaria uma outra figura de linguagem ao invés dessa?”. Por meio da discussão, lhes foi proposto que escolhessem outras figuras de linguagem substitutas para algumas das encontradas no conto, de modo que os efeitos de sentido pretendidos se aproximassem dos originais.

Por se tratar de um assunto novo e tido como interessante para a turma, a aula contou com várias contribuições dos alunos, principalmente nos momentos em que eram questionados. A atividade cobrada, que consistiu na escolha de alternativas às figuras de linguagem encontradas nos contos foi proveitosa, pois a maioria dos alunos desejou expressar suas sugestões. A essa altura, os estudantes já tinham um entendimento razoável das categorias da narrativa e da estrutura do gênero conto, o que foi confirmado nas perguntas avaliativas dirigidas à turma.

Quinto dia de regência

Plano de aula elaborado

Data: 10/11/2016

Objetivo: Revisar as categorias narrativas e a estrutura do gênero conto; discutir as principais dificuldades ao ler um conto africano de expressão portuguesa (questões de variação linguística).

Conteúdo: Vídeo Cinco dicas para escrever contos.

Material: Datashow; lousa.

Estratégias: Perguntas dirigidas aos alunos; sistematização na lousa; debate.

Atividade: Discussão coletiva sobre as diferenças entre algumas variedades do português e sobre estratégias de produção de um conto (módulo IV).

A aula foi iniciada por meio da recapitulação, com anotações na lousa e discussões sobre os elementos da narrativa e da estrutura do gênero literário conto. Depois, procedemos à reflexão a respeito da variação linguística presente nos textos: “Quais foram suas principais dificuldades?”. As respostas diziam respeito, principalmente, ao léxico, por conta do uso de palavras do Português usado em Guiné Bissau ou em Moçambique, da inserção de palavras típicas das línguas maternas presentes nesses países e do uso de uma forma verbal até então alheia à maioria: o pretérito mais-que-perfeito simples.

Explicamos, amparados nos pressupostos da Sociolinguística (Bagno, 2013) que a variação é inerente às línguas naturais. As diferenças existentes entre as variedades da língua e o Português brasileiro decorrem, principalmente, da enorme distância geográfica e de fatores de ordem cultural, social ou histórica, de modo que são, todas elas, singulares e legítimas.

Em seguida, relembramos que os usos de palavras típicas de suas línguas maternas em contos africanos de expressão portuguesa, decorrem da pretendida afirmação cultural e linguística. Em relação ao uso do pretérito mais-que-perfeito, apresentamos o uso das formas simples e compostas como equivalentes. No entanto, dissemos que a forma simples, tida como mais marcada pelos alunos, é mais comum à escrita monitorada. Ainda, esclarecemos que o estranhamento deles era inteligível, à medida que o uso desse tempo verbal em sua forma simples não é típico do Português brasileiro, na oralidade.

Posteriormente, apresentamos e discutimos um vídeo no qual uma pré-adolescente de nível leitor avançado dá cinco dicas, amparadas em suas leituras e em sua prática como produtora de contos, de como escrever o gênero, para que os alunos se sentissem influenciados por seu bom exemplo. Mais do que em nenhuma outra aula, os alunos se portaram de maneira atenta e silenciosa, ouvindo, ansiosos, para conseguirem planejar da melhor forma a produção final.

Sexto dia de regência

Plano de aula elaborado

Data: 17/11/2016

Objetivo: Produzir um conto coletivamente (escrita e reescrita).

Conteúdo: Conto autoral.

Material: Cartaz; lousa.

Estratégia: Debate; trabalho em grupo.

Atividade: Produção coletiva de um conto em cartaz (produção final).

Nessa aula, os alunos já sabiam o que fariam, conforme o projeto de classe apresentado na primeira aula e trabalhado, progressivamente, por meio dos três módulos. Para iniciarmos, relembramos: as personagens principais, bem como o espaço e o tempo (este último pode ou não ocorrer na introdução). Após isso, rememoramos e explicamos os sentidos das formas verbais geralmente utilizadas ao narrar: pretéritos perfeitos, mais-que-perfeito e imperfeito. Em seguida, ressaltamos o que foi discutido nas aulas anteriores: os contos obedecem a uma unidade dramática, assim, apenas um conflito é permitido e ele deve ser surpreendente, de forma que desequilibre a harmonia da(s) personagem(ns) protagonista(s). Ainda, foram alertados de que, no desfecho, o conflito poderá ou não ser resolvido.

Enfatizamos, ainda, que a escrita seria de autoria coletiva e pedimos sugestões acerca do que trataria a história, por meio de perguntas como: “Nossa história será a respeito de uma criança perdida? Ou, assim, como a Djênia, do conto da Odete Semedo, tratará de uma menina que perdeu a mãe? Onde ocorrerá? Qual será nosso foco narrativo? O narrador a contará em primeira ou em terceira pessoa? Quantas personagens teremos? Quais serão algumas das características dessas personagens? Por quanto tempo ocorrerá a nossa história?”. Foi-lhes sugerido que não se detivessem em histórias nas quais o tempo em que ocorresse a narrativa fosse longo demais e que pensassem em, no mínimo, três personagens. Anotamos as sugestões na lousa e, em constantes acordos e negociações, selecionamos as sugestões. O texto, em sua primeira versão, escrito na lousa por alunos voluntários, foi ganhando fluidez, coesão, coerência e atendimento ao gênero.

Após a leitura da primeira versão, em parceria com os estudantes, fizemos os ajustes necessários até a versão final (reescrita) no cartaz, que seria afixado em um flanelógrafo da escola. A produção coletiva propiciou subsídios para futuras produções individuais, uma vez que os estudantes puderam entender os mecanismos e as estratégias textuais utilizadas.

A produção textual teve sentido quando estava voltada para uma situação real de comunicação (com uma finalidade e com um público-alvo definidos): divulgação da produção autoral coletiva, por meio de um cartaz na escola, representando um trabalho em equipe de toda a turma em um projeto de classe. Para isso, tiveram acesso aos contos de qualidade, representativos do gênero trabalhado. Infelizmente, a fotografia da produção final foi perdida.

Considerações finais

Aplicamos a SD em torno do gênero literário conto de maneira sistemática, culminando em uma produção textual coletiva, com vistas a uma situação comunicativa real. As observações empreendidas na primeira aula com os estudantes do 6º ano foram fundamentais para que realizássemos um trabalho no qual o texto, realmente, fosse a unidade de ensino da prática pedagógica, conforme orientam os PCNs (Brasil, 1998). A despeito de não termos proposto uma produção escrita inicial, a retextualização em linguagem teatral do conto A guerra dos palhaços, de Mia Couto, nos permitiu avaliar o nível de entrosamento dos alunos com a dramaticidade inerente aos contos, de forma que pudemos averiguar o envolvimento dos estudantes, por meio do improviso, em situações que demandam o despertar da imaginação e da criatividade.

Afinal, na produção de um conto coletivo, a imaginação das crianças foi imprescindível. Desse modo, como vimos em nosso relato, todas as nossas ações gravitaram em torno da possibilidade da consecução dessa produção final. Podemos dizer que o objetivo de valorizarmos a cultura, a estética e o imaginário africanos, por meio dos contos, foi atingido, uma vez que os alunos, pela primeira vez em suas vidas, interagiram positivamente com textos nos quais os universos fictícios, bem como as personagens retratadas, são totalmente diferentes daquelas comumente presentes nos livros didáticos de LP.

Assim, também, cremos que respondemos, favoravelmente, à Lei 10.639/03. Amparados pela ideia de solidariedade racial cunhada pelo conceito de negritude, mencionado no início deste texto, promovemos uma reflexão acerca dos problemas decorrentes da ignorância a respeito do que é ser negro, bem como corroboramos para as afirmações pessoal e social, asseguradas pelos objetivos gerais do ensino de LP, constantes nos PCN (Brasil, 1998).

À guisa de conclusão, destacamos que nem sempre o estagiário pode definir algo a respeito do cronograma curricular da turma, cabendo a ele seguir a proposta recomendada pelo professor regente ou pelo núcleo gestor, mantendo a sua autonomia quanto à maneira pela qual dará as aulas supervisionadas. No entanto, em acordo com a professora regente da turma, tivemos liberdade em relação à definição do gênero conto; como conteúdo a ser trabalhado em seis encontros consecutivos, com autonomia total quanto à escolha dos recursos, das metodologias e das atividades. Não seria possível aplicar uma SD sem a disponibilidade de uma quantidade razoável de aulas para esse trabalho progressivo e sistemático. Por conta da confiança depositada em nossa parceria, agradecemos à professora G., responsável pela disciplina de LP da turma de 6º ano.

Referências

ALMEIDA, P. C. de. A presença da literatura africana lusófona no livro didático de Língua Portuguesa do 3º ano do Ensino Médio (PNLD 2012-2015): uma reflexão histórica, social e literária. 2017. 186f. Dissertação (Mestrado em Educação: História, Política, Sociedade) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.

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Publicado em 30 de janeiro de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

LIMA, Francisco Rangel dos Santos Sá; CÁ, Libânia Fernandes; PEIXOTO, Camila Maria Marques. Um contato com a África por meio do gênero literário conto no Ensino Fundamental. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 3, 30 de janeiro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/3/um-contato-com-a-africa-por-meio-do-genero-literario-conto-no-ensino-fundamental

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