Tecnologias da cultura africana e afrodescendente: pesquisa bibliográfica a partir da perspectiva decolonial

Márcia Regina de Souza

Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Novas Tecnologias Digitais na Educação (UniCarioca)

Paulo Victor Rodrigues de Carvalho

Professor doutor, orientador no Programa de Pós-Graduação em Novas Tecnologias Digitais na Educação da UniCarioca

O patrimônio histórico e intelectual dos povos marginalizados foi silenciado por um projeto moderno, ocidental e eurocêntrico de poder que se baseia na anulação do não europeu para justificar o domínio e a exploração a que subjugaram os povos colonizados também no que tange à construção do conhecimento. Esse imaginário dominante se perpetua ao longo do tempo e está inserido em várias esferas da sociedade, inclusive no âmbito escolar uma vez que os saberes transmitidos se embasam em uma visão predominantemente eurocêntrica. Dessa forma, a questão principal que norteia este estudo é: Como o conceito de decolonialidade contribui para as discussões a respeito da desconstrução da perspectiva eurocêntrica nos processos educativos?

Sendo assim, trazer à baila as contribuições científicas e tecnológicas dos povos africanos em diferentes campos do saber, como na Matemática, na Arquitetura, na Engenharia, na Metalurgia, na Mineração e na Medicina, entre outros campos, desconstrói a fabulação europeia a respeito dos africanos classificados como povos irracionais e subdesenvolvidos, além de reconhecê-los e valorizá-los em sua produção cultural, contribuindo para que a sua diversidade e pluralidade de saberes sejam respeitadas e naturalizadas em prol de uma sociedade mais democrática, justa, igualitária, pluriétnica e multicultural.

Nessa perspectiva, a metodologia definida para a elaboração do presente artigo foi a pesquisa bibliográfica, cujo referencial teórico foi estruturado em dois tópicos: pedagogia decolonial e decolonialidade (Oliveira; Candau, 2010; Walsh; Oliveira; Candau, 2018) e tecnologia africana e afrodescendente (Rodrigues da Silva; Brito Dias, 2020; Costa Júnior, 2021).

Além de definir a metodologia, o presente estudo se estrutura em três seções: a primeira conceituará a tecnologia e a cultura africana no decorrer na história; a segunda apresentará a perspectiva da decolonialidade e da pedagogia decolonial e a última abordará como a pedagogia decolonial tem se aplicado nas leis brasileiras de educação. 

Metodologia

Conforme Souza, Oliveira e Alves (2021), a pesquisa científica está presente em várias áreas de conhecimento e tem por objetivo examinar, detalhar e responder um questionamento que surge de um fenômeno em estudo. Há diversas modalidades metodológicas e, entre elas, está a pesquisa bibliográfica.

Os autores apontam que a pesquisa bibliográfica faz parte da rotina dos estudos acadêmicos cuja finalidade é aperfeiçoar e reciclar os conhecimentos por meio da investigação metódica e científica de obras publicadas importantes para solucionar o problema de pesquisa em questão. Ressalta-se que para tal é preciso dedicação e empenho por parte do pesquisador, reunindo e sistematizando os dados levantados para embasar o trabalho científico.

De acordo com Martins e Theóphilo (2016 apud Soares; Picolli; Casagrande, 2018), a pesquisa bibliográfica se constitui um procedimento essencial para levar a cabo qualquer pesquisa científica, visto que busca aclarar e discorrer a respeito de um determinado tema ou problema, com base em referencial bibliográfico publicado em várias fontes (livros, periódicos, revistas, sites etc.). Além disso, procura investigar e apresentar contribuições atualizadas a respeito de certo assunto. Cabe salientar que a pesquisa bibliográfica pode ser o único método utilizado ou mesmo ser uma etapa preliminar de outros tipos de pesquisa, como a descritiva ou a experimental.

A respeito dos conceitos do objeto de estudo dessa tese, realizou-se um levantamento bibliográfico em duas plataformas de produção científica: SciELO-Brasil e Google Acadêmico. Esta seção apresentará duas temáticas: a Pedagogia Decolonial e decolonialidade e as tecnologias da cultura africana e afrodescendente. O levantamento bibliográfico foi realizado com base nos critérios apresentados no Quadro 1.

Quadro 1: Levantamento bibliográfico

 

Resultados encontrados

1º Critério

Artigos científicos, excluindo livros, dissertações ou teses

2º Critério

Artigos científicos publicados entre os anos de 2018 e 2023

3º Critério

Relevância de publicação e de citação pelas plataformas

Textos selecionados

 

SciELO

Google

Acadêmico

Pedagogia decolonial e decolonialidade

Pedagogia

decolonial – 0

Decolonialidade - 86

Pedagogia decolonial -

23.200

Decolonialidade- 15.100

Pedagogia decolonial – 16.000 artigos científicos no Google Acadêmico

Decolonialidade- 84 artigos científicos na SciELO e 95 no Google Acadêmico

Pedagogia decolonial – 11.700 artigos científicos no Google Acadêmico

Decolonialidade -64 artigos científicos na SciELO e 85 no Google Acadêmico

Pesquisa nas dez primeiras páginas das plataformas de produção científica

6 artigos científicos

Tecnologias da cultura africana e afrodescendente

1 resultado

103.000 resultados

2.130 artigos científicos no Google Acadêmico

1.250 artigos científicos no Google Acadêmico

Pesquisa nas dez primeiras páginas das plataformas de produção científica

2 artigos científicos

Assim, apresentamos os dois conceitos principais que serão abordados neste artigo. Cada coluna detalhou os critérios aplicados para a seleção final dos textos utilizados no estudo e pesquisados nas principais plataformas de produção científica. O primeiro critério empregado foi a escolha de artigos científicos, por serem recortes de pesquisas; o segundo critério foi a escolha de artigos recentes, excetuando-se um deles, do ano de 2010, e que faz uma excelente revisão bibliográfica dos principais autores da decolonialidade, como Aníbal Quijano e Ramón Grosfoguel. Como o número de artigos encontrados era muito alto, ficava inviável realizar uma pesquisa tão abrangente. Desse modo, foram analisadas as dez primeiras páginas das plataformas que organizam os textos por relevância de publicação e citação, totalizando seis artigos de pedagogia decolonial e decolonialidade e dois acerca das tecnologias da cultura africana e afrodescendentes. Todos trazem aportes essenciais para este estudo. 

Resultados e discussões

Esta seção tem por objetivo apresentar os resultados e discussões provenientes da revisão bibliográfica realizada dos tópicos que embasaram o presente texto, além de trazer a relação deles com os dispositivos legais (a Lei nº 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, e as Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana) sancionados no Brasil entre 2003 e 2004.

Tecnologias da cultura africana e afrodescendente ao longo da história

Esta seção tem por objetivo conceituar os termos tecnologia e cultura africana e afrodescendente, desenvolvidos ao longo da história. As discussões têm por base o referencial teórico dos autores Costa Júnior (2021), que discorre sobre os aportes epistemológicos, científicos, filosóficos e culturais do antigo Egito e da África subsaariana, e de Rodrigues da Silva e Brito (2020), que realizam um sucinto mapeamento das tecnologias de matriz africana e afrodescendente no Brasil.

Tecnologias da cultura africana e afrodescendente

A crença arraigada em nossa sociedade de que a ciência e a tecnologia estão totalmente apartadas da realidade do continente africano é um contrassenso, uma vez que o primeiro ser humano, o Homo sapiens, surgiu na África há milhares de anos, segundo os estudiosos. Sendo assim, podemos afirmar que devemos a ele a vida, pois se não tivesse migrado em direção a outros continentes não existiriam europeus, americanos, asiáticos ou orientais.

Ao sair da África, onde permaneceu ainda por muito tempo, o Homo sapiens não era destituído de inteligência. De acordo com Costa Júnior (2021), para viver e sobreviver na natureza precisou desenvolver artefatos, ferramentas e estratégias a fim de interagir com o meio ambiente. Dessa forma, a vida e a cultura humanas não seriam possíveis sem os conhecimentos oriundos dessas vivências, experiências e interações do Homo sapiens com o entorno. Na realidade, os africanos são os primeiros cientistas da história, uma vez que suas invenções constituem os primórdios da pré-histórica científica e da tecnologia (Lopes, 2011 apud Costa Júnior, 2021).

As afirmações do filósofo alemão Hegel, de que o povo africano era desumano e incivilizado, segundo Hernandez (2005 apud Costa Júnior, 2021), são infundadas, tendo em vista que nas antigas sociedades africanas, como a egípcia, a núbia e a cushita, se constatam a presença e a evolução da ciência e da tecnologia em diversos âmbitos da vida cotidiana.

O autor ressalta que o patrimônio histórico e cultural produzido pelos antigos egípcios em várias áreas do conhecimento, antes de Cristo, embasa o desenvolvimento da cultura, das artes, da ciência e da filosofia das civilizações greco-romanas e, por conseguinte, da Europa, causando desconforto entre estudiosos ocidentais que se recusam a admitir a importância do continente africano para a construção do arcabouço epistemológico dessas sociedades.

Costa Júnior (2021) aponta que vários pensadores, historiadores e filósofos gregos estudaram no Antigo Egito e desfrutaram da riqueza de saberes dessa civilização: a invenção do calendário de 365 dias e 12 meses pelos astrônomos egípcios; o heliocentrismo e os movimentos de translação e rotação da Terra já conhecidos por esses astrônomos muito antes de Nicolau Copérnico e Galileu Galilei; os primeiros sistemas de escrita, como os meroíticos e os hieróglifos egípcios; o Osso de Ishango, um dos primeiros artefatos matemáticos descobertos; as casas da vida, que correspondiam a universidades na África antiga; os diferentes calendários desenvolvidos pelos antigos astrônomos egípcios; as surpreendentes técnicas de engenharia envolvidas na construção das monumentais pirâmides do antigo Egito em Gizé, entre outros. Tudo isso envolvia conhecimentos em diferentes áreas do saber e que revelam uma grande capacidade intelectual dos povos africanos.

No entanto, cabe ressaltar que, criado antes do surgimento dos primeiros sistemas de escrita, esse legado histórico e intelectual foi preservado por meio da oralidade. Para os antigos africanos, a tradição oral teve um papel preponderante na documentação de saberes espirituais, filosóficos e científicos, muito antes da invenção da escrita, permitindo que todo esse conhecimento fosse mantido. Um exemplo disso foram os griots ou griôs, pessoas mais velhas que possuíam uma grande capacidade de memorização e, por isso, assumiam o papel de guardiões dos saberes ancestrais, das tradições, dos costumes, da história e da cultura africana (Costa Júnior, 2021).

Mesmo na diáspora africana – que compreende a dispersão dos povos africanos pela Europa, Ásia e América devido à escravização e ao tráfico de homens e mulheres trazidos como mão de obra para atender a fins mercantilistas –, a partir da colonização no século XVI, essa herança é resguardada. Rodrigues da Silva e Brito (2020) discorrem a respeito do conceito de matriz africana como o patrimônio intelectual proveniente da África propagado para todos os africanos que vivem fora do continente. Esses autores representam a África como uma árvore cujos galhos se estendem para fora do continente africano, porém suas raízes permanecem fincadas na terra natal e preservam os saberes ancestrais de diferentes etnias, reinos e povos, nutrindo esses ramos e permitindo que toda essa herança se mantenha viva, sendo repassada por meio das futuras gerações.

De acordo com os autores, a escravização dos povos africanos teve como objetivo não só trazer mão de obra para trabalhar nas colônias da América, mas a sua expertise. Em alguns casos, a perseguição e a migração forçada dessas pessoas estavam intimamente relacionadas ao conhecimento tecnológico que possuíam, assim como ocorreu com as populações da Costa do Ouro, especialistas nas técnicas de mineração.

No Brasil, as contribuições da tecnologia africana são impressionantes. Segundo os autores, a extração de minério e a fundição de metais só aconteceram graças aos conhecimentos trazidos pelos africanos escravizados. Aliás, foram eles os responsáveis por introduzir a metalurgia no país. Cabe destacar aqui o papel dos quilombos, localidades de resistência à escravidão e territórios guardiões de saberes ancestrais e de algumas das tecnologias africanas e afrodescendentes existentes em diferentes áreas, como a própria metalurgia, por exemplo.

Ainda de acordo com os autores, a Matemática Fractal ou Etnomatemática, desenvolvida no continente africano, está presente em vários aspectos da vida cotidiana, como nas estamparias e nos penteados ancestrais, oferecendo soluções em diversas áreas do conhecimento, como a Engenharia e a Arquitetura; também na construção civil, várias técnicas e saberes africanos foram empregados nas edificações do Brasil Colônia utilizando materiais sustentáveis; na agricultura e na Etnobotânica, destaca-se o manuseio das plantas para o tratamento de doenças, sua utilização na culinária e nos ritos das religiões de matriz africana, além da introdução de diversas culturas agrícolas pelos povos africanos e afrodescendentes (café, inhame, dendê, coco da Bahia, cana-de-açúcar, oriunda do continente asiático); a tecnologia têxtil empregada não se limita somente à confecção de roupa, uma vez que o cultivo do algodão na África data de 5.000 a.C., mas também ao conhecimento que detinham sobre produção de tintas, tingimento e fixação das cores; a tecnologia bastante avançada para a época no que tange à confecção de canoas que chegavam a mais de onze metros de comprimento e algumas até possuíam velas. Essas embarcações foram mantidas durante séculos nos quilombos.

Os autores que levam a cabo em seus estudos um mapeamento sucinto das principais tecnologias procedentes de matriz africana no Brasil também salientam a importância da tradição oral africana reproduzida por meio do jongo, manifestação cultural afro-brasileira que nasceu em meados do século XIX. O tambus e as danças usavam em seus pontos ou cânticos uma linguagem cifrada que só os jongueiros eram capazes de compreender. Dessa maneira, a roda de jongo era o momento de conversa entre eles para combinar fugas, zombar dos senhores ou protestar contra a escravidão.

Na realidade, muitos não reconheceriam nesse mapeamento o valor da oralidade como ciência. Entretanto, Silva (2022) reflete sobre a concepção das Epistemologias do sul, de Boaventura de Sousa Santos, ao conceituá-las como saberes que não são oriundos de um rigor científico metódico ou empírico, arraigado no pensamento eurocêntrico, mas que refletem as lutas sociais, as vivências e experiências das comunidades locais pertencentes aos países periféricos ou do sul global. Sendo assim, a ciência deve ser resultante dos conhecimentos sociais e de uma metodologia científica tradicional, sem que uma se sobreponha à outra. A decolonização do saber é uma resposta crítica aos padrões da epistemologia dominante a fim de se buscar outra maneira de produzir ciência, considerando-se a diversidade e a pluralidade de conhecimentos e estabelecendo uma relação dialógica e intercultural entre as diferentes culturas, para que os saberes locais sejam valorizados pelo paradigma emergente (Santos, 2010 apud Silva, 2022).

A perspectiva da decolonialidade e da Pedagogia Decolonial

Esta seção visa apresentar a perspectiva teórica de autores da decolonialidade e da Pedagogia Decolonial. As discussões se embasam em Oliveira e Candau (2010), que analisam as possíveis convergências entre as propostas da Pedagogia Decolonial e intercultural e as políticas públicas de ação afirmativa que visam à reconstrução curricular no Brasil; em Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016), que refletem sobre os conceitos de decolonialidade, pensamento de fronteira e transmodernidade e o lugar epistêmico do negro nesse contexto; em Antunes e Modesto (2018), que examinam a ínfima representatividade da diáspora africana em coleções didáticas com base nos operadores de dominação na racialidade de Michel Foucault; e na proposta interculturalista crítica de Catherine Walsh e Aníbal Quijano e Walsh, Oliveira e Candau (2018), que elaboram um dossiê com base em alguns dos principais conceitos que norteiam as discussões do grupo modernidade/colonialidade.

Decolonialidade e Pedagogia Decolonial

O silenciamento do patrimônio cultural dos indígenas e dos africanos tem suas raízes nos processos de colonização dessas nações, mais especificamente na colonialidade (Oliveira; Candau, 2010; Antunes; Modesto, 2018). Segundo os autores, o colonialismo se configura na subjugação desses povos pelos colonizadores europeus. Já a colonialidade, fruto do colonialismo, transcende até os dias atuais, mesmo após os países colonizados terem conquistado sua independência, e tem como pilares a ideia de raça, de racismo e do sistema econômico capitalista.

Nesse contexto em que se formam as nações europeias e a modernidade, se estabelece o controle não só do trabalho, do Estado e das instituições, mas também um cerceamento dos saberes dos povos inferiorizados, uma vez que a Europa e suas produções de conhecimento passam a ser tidos como referência e verdades universais. No século XVI, segundo Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016), surgiu o “eurocentrismo”, que anula o imaginário dos povos marginalizados para impor o imaginário europeu, promovendo o silenciamento e o esquecimento de outras formas de viver, saber e existir no mundo. Com ele nasce o “mito da modernidade” (Bernardino-Costa; Grosfoguel, 2016) em que as sociedades europeias se autointitulam desenvolvidas e adiantadas e julgam o outro primitivo e atrasado. Esse imaginário dominante se perpetua no tempo e está arraigado não só no campo cultural, que constitui os indivíduos colonizados como inferiores e subalternos, mas também nas ciências de forma geral.

Por conseguinte, a decolonialidade (Oliveira; Candau, 2010) surge como um contraponto a essa relação de poder estabelecida na luta pelo (re)conhecimento de outros saberes, vivências e existências. Ou ainda o pensamento de fronteira, apresentado por Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016), que se constitui em uma reação epistêmica dos povos inferiorizados, como, por exemplo, africanos e indígenas, na busca por visibilidade de outros saberes, conhecimentos e compreensão simbólica de mundo. Vale destacar que o conceito de colonialidade, discutido por Oliveira e Candau (2010) e Antunes e Modesto (2018), parte dos estudos teóricos de Nelson Maldonado-Torres e Aníbal Quijano, respectivamente. No que concerne à decolonialidade, Oliveira e Candau (2010) se embasam em Catherine Walsh.

Como resposta crítica às epistemes que se baseiam em um modelo eurocêntrico, surge um conceito mais atual, que é o da transmodernidade. Segundo Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016), ela representa um projeto utópico de Enrique Dussel de resistência decolonial, que abarca tanto os sujeitos do sul global quanto os povos, culturas e lugares subjugados pelo pensamento eurocêntrico, dominante em prol de um mundo mais justo e igualitário onde a diversidade e a pluralidade epistêmicas sejam reconhecidas.

Nesse contexto, o conceito de Pedagogia Decolonial (Oliveira; Candau, 2010; Walsh; Oliveira; Candau, 2018) vai de encontro a esse pressuposto, visto que não se restringe a mera transmissão de conhecimento. A missão é trazer à baila saberes invisibilizados por um projeto eurocêntrico, moderno e ocidental no que tange à produção de conhecimento, por isso mesmo vai além do pedagógico ao se constituir em um projeto político, social, cultural e epistêmico que deve estar presente não só no âmbito escolar e acadêmico, mas também nos movimentos sociais, nos espaços públicos, nas comunidades quilombolas etc. No entanto, ainda se encontra em processo de construção tanto no âmbito teórico quanto educativo.

Perspectiva decolonial e as leis brasileiras de educação

Esta seção tem como finalidade compreender como a perspectiva decolonial tem se aplicado por meio das leis brasileiras de educação sancionadas nos anos 2003 e 2004. Os conceitos teóricos que norteiam essa discussão se embasam nas normas legais: a Lei nº 10.639/03 (Brasil, 2003) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Brasil, 2004) e observar o que dizem Oliveira e Ferreira (2023), além de retomar os autores mencionados.

Perspectiva decolonial e a Lei nº 10.639/03

No Brasil, graças às reivindicações do movimento negro, se abre um caminho importante rumo à construção de uma pedagogia decolonial e intercultural no que concerne à construção dos currículos nacionais, graças aos dispositivos legais que são sancionados, como a Lei nº 10.639/03 (Brasil, 2003), que altera a Lei nº 9.394/96, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996), e institui o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino de Educação Básica do país, junto às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais (Brasil, 2004). Ambas são ações afirmativas de políticas públicas de inclusão social que objetivam valorizar a história e a cultura dos afro-brasileiros e africanos em prol de uma sociedade mais democrática, justa e igualitária que se caracteriza pela multiplicidade de etnias e culturas.

Não obstante, entre a homologação desses marcos legais e a efetiva concretização de uma educação antirracista em âmbito escolar há uma longa distância. Em muitas coleções didáticas distribuídas nas escolas, por exemplo, são raríssimas as menções à contribuição dos africanos e afrodescendentes em atividades intelectuais como a ciência e a tecnologia. Segundo Oriá (2005 apud Andrade, 2019), “quando aparecem nos livros didáticos, seja através de textos ou de ilustrações, índios e negros são tratados de forma pejorativa, preconceituosa ou estereotipados” (Oriá, 2005, p. 380).

Essas coleções didáticas estão em desacordo com os dispositivos legais cujo objetivo não é somente valorizar e reconhecer a história e a cultura africanas e afrodescendente, mas reparar historicamente anos de invisibilidade desses povos e de suas produções culturais, abrindo caminho para a construção e implementação de uma Pedagogia Decolonial e intercultural (Oliveira; Candau, 2010; Walsh; Oliveira; Candau, 2018), que evoque outras epistemes, etnias, raças, culturas e histórias.

Isso exige comprometimento e responsabilidade de todos os atores envolvidos no campo educativo, além de uma quebra de paradigmas com relação à prática docente, com a mudança nos currículos escolares, nos conteúdos programáticos e nos planejamentos, para a inserção da temática na práxis pedagógica. Ademais, isso não deve se limitar somente à História ou à Geografia, mas estar inserida em todos os componentes curriculares. Nas palavras de Castro-Gómez (2007 apud Matos, 2020) é necessário “transculturar” os currículos, fomentando um diálogo intercultural entre as diferentes áreas do saber com o intuito de superar o racismo epistêmico e promover uma educação para a “diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira” (Brasil 2004).

Contudo, Walsh (2005; 2006; 2007 apud Oliveira; Candau, 2010) afirma que a Pedagogia Decolonial não se limita ao mero repasse de conhecimentos; ela vai muito além, visto que a autora concebe a “Pedagogia como política cultural”, ou seja, deve estar presente no espaço escola a fim de que se possa construir uma sociedade em que as relações étnico-raciais sejam mais harmônicas, em que se supere o racismo estrutural sob o qual se erigiu a nação brasileira e que a formação do cidadão se paute no respeito ao que é plural e à diversidade.

Cabe salientar que a falta de representatividade negra nas coleções didáticas, sobretudo no campo intelectual, afeta de forma negativa os nossos jovens negros e negras. Segundo Antunes e Modesto (2018), que aludem a Aníbal Quijano em seus estudos – segundo a ótica colonial –, os corpos negros são destituídos de vontade, uma vez que o naturalizam como destinado à sensualidade, ao trabalho braçal, à força física e às privações de toda ordem (fome, miséria, pobreza). Essa perspectiva de inferioridade e estigmatização das pessoas negras acaba sendo absorvida pelos estudantes, que terminam por renegar o patrimônio cultural de seu povo, sua cor de pele, seu cabelo e seus traços físicos, buscando referenciais culturais de países cuja população em sua maioria é branca, em uma tentativa de embranquecimento.

Para Fanon (1983 apud Oliveira; Ferreira, 2023), psiquiatra e filósofo político martinicano, descolonizar-se significa libertar-se desse sentimento de menos valia que representa um grilhão no campo da mente, da cultura, da cognição e do intelecto que impedem que o povo negro conquiste a sua autonomia. Por esse motivo, a importância do cumprimento dos marcos legais e a criação de referências identitárias, em especial no campo intelectual, é imprescindível para que os estudantes negros e negras transponham esse estigma de inferioridade, se sintam orgulhosos do legado histórico de seus ancestrais como construtores de conhecimento.

Considerações finais

O reconhecimento e a valorização do legado histórico e intelectual africano e afrodescendente por meio de ações afirmativas de políticas públicas educacionais com a homologação da Lei nº 10.639/03 sem sombra de dúvidas abre um importante caminho para a construção de uma pedagogia decolonial e intercultural que visa reparar anos de invisibilidade desses povos e suas produções culturais.

Nessa perspectiva, evocar as tecnologias da cultura africana e afrodescendente presentes nas diferentes áreas do saber demonstra o quanto esses povos detinham conhecimentos sumamente complexos e revelam sua grande capacidade intelectual, além de descontruir a invenção europeia de que seriam selvagens primitivos e atrasados em prol da decolonização das mentes, das culturas e do (re)conhecimento de outras formas de pensar, saber, ser e existir no mundo.

Entretanto, a inexpressiva representatividade das pessoas negras nos livros didáticos, que se constata principalmente no campo intelectual, afeta os jovens estudantes negros e negras na sua formação identitária e na construção de sua subjetividade, tendo em vista que esses materiais desempenham papel preponderante no processo de ensino-aprendizagem dos diferentes componentes curriculares da Educação Básica. Igualmente, revela que, mesmo depois de 20 anos da aprovação dos marcos legais no campo educacional, ainda há um longo caminho para a sua consumação na práxis pedagógica.

Cabe ressaltar que a luta pela legitimação de outros saberes, vivências e existências não significa absolutamente rechaçar o Ocidente e suas produções culturais. Ao contrário disso, pois o que a Pedagogia Decolonial, que se expressa na interculturalidade, propõe é a superação de uma ótica colonial para que exista o respeito à diversidade e à pluralidade de epistêmicas e o estabelecimento de um permanente diálogo entre os conhecimentos ocidentais e os subalternizados de forma crítica e equânime.

Espera-se com este estudo contribuir para o fomento de relações étnico-raciais mais respeitosas dentro e fora do âmbito escolar.

Referências

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Publicado em 08 de janeiro de 2025

Como citar este artigo (ABNT)

SOUZA, Márcia Regina de; CARVALHO, Paulo Victor Rodrigues de. Tecnologias da cultura africana e afrodescendente: pesquisa bibliográfica a partir da perspectiva decolonial. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 1, 8 de janeiro de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/1/tecnologias-da-cultura-africana-e-afrodescendente-pesquisa-bibliografica-a-partir-da-perspectiva-decolonial

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