Brincadeiras e brinquedos do Cariri cearense: uma experiência interdisciplinar no Ensino Fundamental

A escola representa, para muitas crianças e jovens, um espaço central de aprendizado, onde são adquiridos conhecimentos essenciais para interagir com o mundo ao seu redor. No ambiente escolar, cada disciplina organiza-se para explorar aspectos específicos da cultura e dos saberes historicamente construídos, buscando promover aprendizagens significativas que preparem os alunos para a vida em sociedade.

Entre os diversos conhecimentos que podem ser trabalhados, destacam-se os brinquedos e as brincadeiras que, conforme Campos et al. (2020), desempenham papel fundamental no aprendizado e no engajamento das crianças. Por meio do brincar, os alunos se sentem livres para criar, expressar-se e experimentar, o que favorece um aprendizado mais significativo e prazeroso. Ferreira e Pimenta (2024) enfatizam que o brincar, além de despertar a imaginação, a criatividade e o faz-de-conta, proporciona às crianças momentos de lazer e interação no ambiente escolar, reforçando a importância de reconhecê-las como seres capazes, imaginativos e dotados de vontade própria. Esses elementos tornam-se ainda mais ricos ao serem contextualizados com a cultura local, como ocorre na região do Cariri cearense, onde o patrimônio cultural, expresso em brinquedos e brincadeiras tradicionais, carrega significados históricos e sociais que podem fortalecer a identidade e a socialização das crianças.

Embora todas as disciplinas possam incorporar brincadeiras em suas práticas pedagógicas, os componentes curriculares de Educação Física e Arte possuem um direcionamento específico para abordar o brinquedo e a brincadeira como conteúdos centrais. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Brasil, 2017) destaca, na Educação Física, a unidade temática “Brincadeiras e jogos”, que valoriza o ato de brincar e promove o conhecimento de práticas corporais de diferentes culturas. Já na área de Arte, os brinquedos e brincadeiras estão presentes na unidade temática “Artes integradas”, com o intuito de explorar o patrimônio cultural, incentivando o contato dos alunos com práticas criativas e lúdicas.

Nesse contexto, a interdisciplinaridade emerge como uma abordagem relevante para o ensino desses conteúdos. Para Soares, Prodócimo e Marco (2016), a interdisciplinaridade consiste na integração de conhecimentos de duas ou mais disciplinas, promovendo uma visão mais abrangente e conectada do mundo. Ao trabalhar com brinquedos e brincadeiras típicos do Cariri cearense, essa perspectiva permite que os alunos vivenciem não apenas o ato de brincar, mas também compreendam e valorizem sua cultura local.

Diante disso, o objetivo deste estudo é apresentar uma experiência interdisciplinar desenvolvida por um professor de Educação Física e uma professora de Arte no tratamento do conteúdo “brinquedos e brincadeiras”, com ênfase na cultura regional do Cariri cearense.

Metodologia

Este trabalho se configura como um relato de experiência, definido por Daltro e Faria (2019) como uma narrativa que apresenta, de forma articulada, a vivência prática, o contexto em que ela ocorre e seu tempo histórico, fundamentada em um arcabouço teórico significativo.

A coleta dos dados foi realizada por meio de observação não sistematizada, durante quatro aulas de Educação Física e quatro aulas de Arte, em uma turma do primeiro ano do Ensino Fundamental de uma escola pública localizada na cidade de Crato/CE. As observações foram conduzidas com atenção, buscando registrar atitudes, comportamentos e falas dos alunos que contribuíssem para a análise e o direcionamento da pesquisa. Também foram realizados registros fotográficos, explorados no relato de modo a resguardar o anonimato dos participantes.

Para a apresentação dos resultados, optou-se por uma estrutura em duas etapas: inicialmente, será descrita a experiência vivenciada, detalhando o planejamento e a execução das atividades. Em seguida, será realizada uma discussão fundamentada, com reflexões sobre os aprendizados e impactos decorrentes da prática interdisciplinar.

Cenário e atividades: a construção da experiência com brinquedos e brincadeiras

A experiência foi desenvolvida em uma escola de Ensino Fundamental do município de Crato/CE, em uma turma de primeiro ano do Ensino Fundamental, composta por 25 alunos. A ideia surgiu de uma professora pedagoga que, ao planejar suas aulas semanais, percebeu que o próximo conteúdo da disciplina de Artes seria a construção de brinquedos. Assim, decidiu convidar o professor de Educação Física para colaborar no desenvolvimento do tema, convite prontamente aceito. Após isso, realizou-se uma reunião para definir as etapas da experiência, bem como os brinquedos e brincadeiras a serem explorados, de forma a integrar os objetivos de ambas as disciplinas.

Os brinquedos e brincadeiras escolhidos foram: boca de palhaço (conhecido popularmente como “pé de lata”), baladeira (ou estilingue), trancelim e pião. Na disciplina de Artes, os alunos conheceriam os brinquedos, relacionando-os à cultura local e, posteriormente, construiriam os objetos necessários. Em seguida, na disciplina de Educação Física, vivenciariam as brincadeiras de forma prática, com foco na dimensão do movimento corporal.

Essa experiência foi realizada ao longo de um mês, com quatro aulas de cada disciplina.

Aula 1: Boca do palhaço

Na primeira aula, os alunos conheceram a brincadeira Acerte a boca do palhaço. Sob orientação da professora de Artes, construíram o brinquedo utilizando caixas de papelão, folhas e pincéis. Em seguida, foram conduzidos ao pátio, onde participaram da atividade: acertar a “boca do palhaço” com bolas de tamanhos diferentes, ajustando distâncias, posições e utilizando ambas as mãos. A Figura 1 mostra essa prática.

Aula 2: Baladeira (Estilingue)

Na segunda aula, os alunos construíram baladeiras utilizando galhos de árvore, borracha de soro, couro e ligas. Durante a confecção, a professora discutiu a relevância cultural desse brinquedo no contexto do Nordeste e do Cariri, onde ele é popular, especialmente em áreas rurais. Na prática, os alunos inicialmente lançaram pequenas bolas de papel para se familiarizar com o movimento e, em seguida, tentaram acertar alvos, como garrafas plásticas. A Figura 2 traz uma imagem representativa dessa prática.

Aula 3: Perna de pau adaptada (ou Pé de lata)

A terceira aula abordou a construção da perna de pau adaptada. Os pais dos alunos foram orientados a enviar latas de leite vazias, que foram utilizadas junto com barbantes para a confecção do brinquedo. Na experimentação, realizada na quadra, os alunos inicialmente utilizaram o brinquedo com a ajuda do professor, mas, com o tempo, aqueles que se sentiram mais confiantes formaram trios para praticar de forma colaborativa. A Figura 3 apresenta uma imagem representativa.

Aula 4: Culminância do projeto

Na última aula foi realizada uma culminância no pátio da escola, quando os alunos praticaram novamente as brincadeiras aprendidas e ensinaram os colegas de uma turma do 2º ano. Além dos brinquedos confeccionados durante as aulas, foram incluídas as brincadeiras de pião e trancelim (elástico), tradicionais na região do Cariri. A culminância buscou reforçar a aprendizagem, a socialização e o reconhecimento do patrimônio cultural local. A Figura 4 mostra um momento dessa prática.

Este relato buscou evidenciar as etapas e os resultados obtidos com a experiência interdisciplinar envolvendo as disciplinas de Educação Física e Artes, tendo como tema os brinquedos e brincadeiras no contexto do Cariri cearense. A integração entre teoria e prática, o trabalho colaborativo entre os professores e a participação ativa dos alunos mostraram-se essenciais para o sucesso da proposta, promovendo aprendizagens significativas e fortalecendo vínculos culturais e sociais.

A partir deste ponto, serão apresentadas reflexões e discussões mais aprofundadas sobre os impactos e as implicações dessa experiência, com base nos elementos observados e no referencial teórico que a fundamenta.

Lições aprendidas: interdisciplinaridade, cultura e socialização no Ensino Fundamental

Durante a realização da experiência, foi notável a participação ativa dos alunos nas atividades, tanto nas aulas de Educação Física quanto nas de Artes. O ato de brincar, como enfatizam Pereira e Silva (2021), configura-se como um poderoso facilitador do aprendizado, pois cria um ambiente no qual as crianças se sentem à vontade para explorar sua criatividade e se engajar no processo educativo. No contexto do Cariri cearense, esse ambiente de aprendizagem tornou-se ainda mais significativo, pois as brincadeiras e brinquedos escolhidos estavam profundamente enraizados na cultura local. Brinquedos como a Boca de palhaço e a Pé de lata são manifestações de um patrimônio cultural vivo, que conecta os alunos às suas tradições e à história da região. Essa relação com o lúdico permitiu que os alunos não apenas se envolvessem com o conteúdo de maneira prática, mas também com o patrimônio cultural de sua própria terra, vivenciando de modo tangível os saberes populares do Cariri.

Outro aspecto relevante da experiência foi a socialização que se desenvolveu entre os alunos durante a construção dos brinquedos e a execução das brincadeiras. Ao se envolverem ativamente na construção dos brinquedos, com o auxílio dos familiares para trazer os materiais, os alunos não apenas aprenderam a trabalhar em grupo, mas também fortaleceram vínculos uns com os outros. Mesmo que um aluno tivesse papel mais destacado na elaboração de um brinquedo, todos tiveram a chance de brincar com ele de forma igualitária. Isso reflete o papel central que o brincar desempenha na socialização infantil, conforme destacado por Oliveira e Sousa (2008).

Ao brincar, as crianças têm a oportunidade de expressar suas emoções, comunicar suas ideias e se conectar com seus pares de maneira espontânea e natural. No contexto cultural do Cariri, onde o compartilhamento e a cooperação são valores importantes, o brincar adquiriu um caráter ainda mais significativo, funcionando como uma ponte para relações de amizade e colaboração.

Além disso, a socialização no contexto das brincadeiras também se manifestou em situações de conflito, o que evidenciou a importância do brincar no desenvolvimento de habilidades sociais. Em alguns momentos, as disputas sobre quem começaria a brincadeira ou quem teria mais êxito nas atividades geraram pequenos impasses, mas os professores adotaram uma postura mediadora, permitindo que os alunos tentassem resolver as situações de forma autônoma. Esse processo reflete o entendimento de que os conflitos fazem parte do aprendizado e da socialização, possibilitando que as crianças desenvolvam habilidades de resolução de problemas, negociação e empatia.

A experiência mostrou que o ambiente de aprendizagem, que envolvia tanto o movimento físico quanto a criação artística, constituía um campo fértil para o desenvolvimento de competências sociais e emocionais essenciais para o crescimento integral das crianças.

O brincar, como apontam Guedes e Silva (2012), é uma ferramenta que permite o desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo, social e moral das crianças. Ao longo da experiência, foi possível observar como os alunos, ao se engajarem nas atividades, atribuíam significados próprios aos brinquedos e brincadeiras. Na atividade Pé de lata, por exemplo, alguns alunos, ao não conseguirem se equilibrar, passaram a utilizar as latas como carrinhos, demonstrando como o ato de brincar é flexível e sujeito às interpretações criativas das crianças. Isso reforça a ideia de que, para elas, o significado dos brinquedos vai além de seu uso tradicional, sendo constantemente reconfigurado por suas vivências e por sua interação com o mundo ao redor. No Cariri, onde as tradições lúdicas são transmitidas de geração em geração, essa flexibilidade na interpretação das brincadeiras reflete a criatividade e a vivência cultural que caracterizam a região.

A colaboração entre as disciplinas de Educação Física e Artes mostrou-se essencial para a realização de uma experiência rica e multifacetada, na qual os alunos puderam explorar os brinquedos e as brincadeiras de forma integrada. A parceria entre os professores de diferentes áreas proporcionou uma abordagem mais holística, permitindo que os alunos se conectassem não apenas com o conteúdo das disciplinas, mas também com a cultura local. Como defendem Soares, Prodócimo e Marco (2016), a interdisciplinaridade entre as áreas do conhecimento possibilita uma aprendizagem mais rica e significativa, pois permite que os alunos abordem um tema sob diferentes perspectivas, ampliando suas compreensões e criando novas conexões.

Diante disso, a experiência demonstrou que as brincadeiras e os brinquedos, especialmente aqueles com vínculo cultural com a região do Cariri, têm potencial para enriquecer o processo educativo. Ao integrar diferentes disciplinas e considerar o contexto cultural dos alunos, foi possível criar uma abordagem de ensino mais envolvente e significativa, que não só promoveu o desenvolvimento motor e cognitivo das crianças, mas também fortaleceu suas habilidades sociais e culturais. A experiência reforçou a importância de valorizar o brincar como uma ferramenta educativa poderosa e de explorar as raízes culturais dos alunos como um recurso para tornar o aprendizado mais pertinente e prazeroso.

Considerações finais

O objetivo deste estudo foi relatar a experiência de ensino desenvolvida de forma interdisciplinar entre os professores de Educação Física e Artes, com foco no ensino de brinquedos e brincadeiras típicas do Cariri, para uma turma do primeiro ano do Ensino Fundamental em uma escola pública do município de Crato/CE. A metodologia adotada envolveu a observação não sistematizada de quatro aulas de cada disciplina, durante as quais os alunos conheceram, construíram e vivenciaram as brincadeiras propostas. As atividades ocorreram ao longo de um mês e envolveram a construção de brinquedos como boca de palhaço, pé de lata, baladeira, trancelim e pião, além de atividades lúdicas e de socialização entre os alunos.

A experiência demonstrou grande engajamento por parte dos alunos, que se mostraram bastante participativos e motivados ao longo de todas as etapas. O uso de brinquedos e brincadeiras típicas da região, com forte vínculo com a cultura local, foi um fator de atração para os estudantes, contribuindo não apenas para o aprendizado, mas também para o desenvolvimento de habilidades sociais e cognitivas. O trabalho colaborativo entre as disciplinas de Educação Física e Artes foi fundamental para proporcionar uma abordagem mais rica e diversificada, oferecendo aos alunos a oportunidade de experienciar o conteúdo de forma integrada, prática e teórica.

Apesar dos sucessos observados, é importante reconhecer que a experiência ainda apresenta limitações. A proposta, ao ser realizada de forma pontual e por iniciativa individual dos professores, carece de uma estrutura mais sistemática e contínua. Para que os benefícios dessa abordagem interdisciplinar sejam ampliados, seria fundamental que o projeto fosse institucionalizado pela escola, com o envolvimento de toda a equipe pedagógica e uma programação regular, de modo a garantir maior profundidade e continuidade nas atividades.

Em síntese, a experiência foi extremamente proveitosa, permitindo aos alunos vivenciar a cultura do Cariri por meio das brincadeiras e brinquedos típicos da região, ao mesmo tempo que favoreceu a socialização e o desenvolvimento de habilidades motoras e cognitivas. Para os professores, o processo também foi enriquecedor, pois possibilitou um aprendizado mútuo e a construção de um trabalho pedagógico colaborativo. A experiência reforça a importância de valorizar as práticas culturais locais e de promover atividades interdisciplinares que tornem o ensino mais dinâmico, envolvente e significativo para os alunos.

Referências

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