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Participação popular na crise do Estado

Leonardo Mello

Sociólogo, pesquisador do Ibase

Texto extraído do Boletim Orçamento e Democracia, n.12, Jun.1999

O Brasil e muitos outros países vêm atravessando uma fase extremamente delicada. A crise fiscal não deixa qualquer governo tranquilo, os ajustes constrangem os orçamentos, a questão social exige mais investimentos e a sobrevivência política, malabarismos ideológicos. Esses problemas, vale lembrar, não são privilégio de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Na Europa, o desemprego também é uma realidade não muito recente, sem falar na Ásia e nos demais países que enfrentaram crises econômicas antes do Brasil, como México, Argentina ou Rússia.

No Brasil, a reforma do Estado veio para remodelar o poder público a essa nova realidade mundial de escassez de recursos e de crise das políticas sociais, inicialmente em escala nacional, mas agora também nas esferas subnacionais. Tal reforma parece deixar o cidadão à própria sorte, além de ser considerada inevitável. Chegamos a um ponto em que a tal rede de segurança social (safety net) não funciona, talvez porque nunca tenha existido mesmo. O Estado quer encolher e não há como a sociedade contribuir mais, tudo isso sem esquecer a "necessidade" de inserção internacional do país, ou de suas elites apenas.

Os problemas são bastante complexos e não ficam menores se pensados na esfera municipal. A violência urbana remete todos nós a discutirmos nossas comunidades, o desemprego atinge as famílias que têm sua renda reduzida, as crianças de rua são o resultado de famílias enfraquecidas em seus alicerces, e a miséria acaba sendo o caminho de muitas pessoas abandonadas pelo Estado, que não dá amparo ou oferece alternativas.

O município, antes primo pobre da federação, não é mais tão pobre assim, pelo menos aqueles assentados em contribuições e impostos próprios de ampla e forte base contributiva. Entretanto, ao longo dos anos ele vem absorvendo novas atribuições, em função das demandas dos cidadãos por melhor qualidade de vida e do repasse de responsabilidades que a União vem realizando. Em consequência, os municípios tornam-se centro das atenções para políticas públicas básicas, bem como para a construção de uma rede de atenção e suporte ao cidadão em situação de miséria ou carência extrema.

Apoio à decisão

O orçamento participativo (OP) é um forte instrumento de decisão e de gestão, que governos municipais têm utilizado para reverter o processo de enfraquecimento do poder público, através da negociação das políticas públicas com a sociedade e da mudança do modelo de gasto público. Antes bandeira quase exclusiva do Partido dos Trabalhadores, tornou-se uma opção também de outros partidos. Hoje mais de 70 municípios por todo o país implementam processos de orçamento participativo, cada um a sua maneira, conforme as dificuldades, prioridades e possibilidades locais.

Ao ampliar sua influência, naturalmente o OP perdeu sua "pureza". Utilizado como bandeira política, tornou-se suscetível também a todas as mazelas que se abatem sobre quaisquer políticas públicas, podendo ser usado como moeda eleitoral ou como instrumento de democratização. Assim, é importante entender o OP como um processo através do qual o Estado divide com os cidadãos o poder de decidir sobre o uso dos recursos públicos. Essa "definição", pode parecer simplista e levar o leitor desavisado a desconfiar de que se está exagerando sobre essa "coisa" de OP. Abrir mão do poder absoluto de definir como serão gastos os recursos públicos seria o mesmo que, na esfera do setor privado, chamar os empregados para decidir sobre os investimentos da empresa.

Mas o risco que se corre é o da descaracterização do orçamento participativo por partidos e pessoas que o utilizem clientelísticamente, destruindo seu poder mobilizador, associando-o às demais bandeiras políticas desgastadas que, não tendo o devido acompanhamento, suporte ou comprometimento por parte de seu agente, são sistematicamente mal implementadas, sob a velha desculpa das dificuldades e limites inerentes ao Estado.

Monitorando os recursos

O Fórum Popular do Orçamento do Rio vem desenvolvendo, ao longo dos últimos anos, trabalho de acompanhamento dos gastos públicos, mais especificamente dos sempre presentes e abundantes remanejamentos que são realizados por iniciativa do prefeito, adequando aquilo que se acordou com a sociedade e o legislativo às suas "novas" prioridades. O Fórum discute políticas públicas, prioridades, diretrizes de ações do Estado, desperdício de recursos, privilégios para atores políticos, enfim, tudo que interessa ao cidadão que mora no município, sem necessariamente ter que discutir ou se afogar em números.

As dezenas de instituições que participam do Fórum, entre as quais o Ibase, trabalham pela democratização da sociedade, que pode se realizar através de vários meios, um dos quais, o orçamento participativo. Já está provado em inúmeros municípios que o OP trouxe melhorias na qualidade de vida dos seus cidadãos menos privilegiados, revertendo uma tendência antiga dos ocupantes do poder de olhar para o cidadão apenas em ano eleitoral, bem ao estilo do aforismo popular de que "político só lembra de pobre quando há eleições".

Em uma situação de crise, a escassez de recursos acirra ainda mais a disputa por políticas públicas compensatórias. Nesse ambiente, chamar a população para decidir é proporcionar maiores chances de diminuir o impacto da crise sobre os mais vulneráveis. Entretanto, as ideias de igualdade e de universalização das políticas públicas são tão avessas à nossa herança cultural, que chegam a ser vistas como subversão ou heresia. E para os que assim pensam, o Estado tem sido extremamente feliz em suas políticas nas últimas décadas.

Depois de anos de concentração de renda e apropriação privada dos recursos públicos, o país tem mais esse instrumento para aperfeiçoar sua democracia, fortalecer suas instituições e reconhecer a cidadania de seus filhos menos afortunados. Porque nos processos participativos as políticas públicas, as obras e os serviços deixam de ser vistos como favor e passam a ser reconhecidos como direitos há muito negados, e cuja escolha dependerá da vontade popular.

Publicado em 25 de abril de 2006

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