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A atualidade crítica de Antero de Quental

Bianka Barbosa Penha

Graduanda de Letras (UFRJ) e editora do Dicionário de Poética e Pensamento

Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos foi escrito por Antero de Quental em 1871. Como se sabe, em tal ensaio o poeta empreende uma reflexão crítica sobre todo o percurso peninsular desde a Idade Média até o século XIX, a fim de perceber os “pecados históricos” responsáveis pela decadência.

Logo no principiar de sua fala, Antero de Quental nos remete para as origens do que efetivamente seria o espírito da raça peninsular. Afirma que o medievo, período inicial de formação luso-espanhola, caracterizava-se por sua independência e originalidade nas relações políticas e econômicas mantidas entre os povos que ali conviveram. Considerados por ele naturalmente religiosos, os povos peninsulares não impunham suas crenças, procuravam manter e perpetuar a tolerância diante das diferenças. No entanto, sabemos hoje que a tolerância observada pelo poeta na realidade estava já embebida de ideologia, ainda que de forma embrionária. Isso fica claro, por exemplo, na canção de gesta intitulada A Canção de Rolando, pois, mesmo havendo bom relacionamento de Carlos Magno e seus doze pares com a comunidade muçulmana, basta verificar os adjetivos e expressões que utilizam para se referirem a esta.

O que fica realmente claro é que a tolerância é aparente, pois, nas entranhas de suas dobras, concentrava-se todo o impulso vital dinamizado pelo catolicismo posteriormente em meados do século XVII. Nesse sentido, ainda que não se pretendendo idealista, Antero de Quental acabou por retomar as ideias de Herculano quando afirma ter sido “a liberdade (...) o estado normal da península” no período medieval. Contudo, tornar a Idade Média o paradigma ideal para alcançar os nervos originários dos povos peninsulares significa manter-se ainda no fluxo de uma história embebida de ilusões. Será que podemos isentar o período medieval de sua responsabilidade na formação do fundamentalismo católico? Não foi ele o primeiro a negar o cristianismo e institucionalizar, mesmo que de forma muito primária, as primeiras arbitrariedades católicas? Não é esse justamente o primeiro momento de violência em nome de uma religiosidade já há muito cega e desfigurada?

Não pretendemos, com todas essas observações, negar ou contestar as posições tomadas por Antero de Quental em seu ensaio gratuitamente. Não se trata aqui de se fazer apenas uma crítica da crítica, mas de efetivamente dialogar com o texto do poeta, de modo que possamos também discordar quando necessário, apontando o que hoje talvez seja para nós mais claro quando diante da caminhada humana genuinamente histórica. Sendo assim, continuemos.

Após essa primeira abordagem, o poeta coloca a primeira grande questão do ensaio: “Como foi que o movimento regenerador da Renascença abortou em nós?” Como havíamos comentado sendo o medievo um período alto de criação e produção da Península, de acordo com Antero, isso possibilitou o desenvolver natural dos primeiros ideais renascentistas no território. De tal modo que, em inícios do século XIV, era a Península a grande detentora do mundo.

Com base na liberdade de pensamento pregada pelo Renascimento, os povos peninsulares experienciavam com glórias todo o seu desenvolvimento nas artes, na política, na economia e, principalmente, nas estratégias de cunho naval. Sendo eles os primeiros a desbravar o além-mar, iniciaram sua jornada na história como grandes civilizadores. Contudo, diante da Reforma Protestante de Lutero e seus seguidores, em meados do século XVI, toda a suposta liberdade de pensamento proporcionada antes pelo medievo e de certa forma consolidada na Renascença transforma-se numa das mais sanguinárias formas de manipulação empreendida pela religiosidade.

Século XVII. A Contrarreforma se inicia com os ditames estipulados no Concílio de Trento, ou seja, uma nova postura passa a ser adotada pelos povos que mais distantes se mantiveram das palavras de Lutero. De acordo com Antero de Quental, inicia-se aqui a decadência dos povos peninsulares. E apesar de apontar três espécies de fenômenos responsáveis pela decadência, a Contrarreforma e sua atuação através da opressão inquisitorial são o núcleo central de toda a problemática peninsular. Baseando-se na ignorância, opressão e miséria até culminar na depravação dos costumes, a religião se torna apenas uma instituição cujos dogmas e disciplinas não eram vividos, antes cobrados. De acordo com Antero, o Concílio de Trento pregou a intolerância com a própria vida. Inimigo das nações, túmulo das nacionalidades. Nesse sentido, ao longo de seu ensaio, o poeta estabelece a diferença fundamental entre o cristianismo, segundo ele vivido no medievo, e o catolicismo, que seria o processo de institucionalização pelo qual passou o cristianismo durante o final do século XVI até se consolidar no século XVII.

Assim distantes das inovações possibilitadas pela Reforma aos povos que a seguiram, portugueses e espanhóis configuram-se apenas “duas nações espectros no meio dos povos que as rodeiam”. Pois, de outro lado, encontrava-se o restante da Europa que, baseando-se na liberdade moral, iniciava a Era Moderna com todo o pensamento voltado para o desenvolvimento industrial-científico e, principalmente, incentivava a elevação da classe média burguesa. Nesses países, chegava aos poucos o fim da lógica monárquica. O afastamento da Península desse processo gradual de desenvolvimento moderno é o grande “erro histórico”, a fonte de todos os outros erros, o responsável pela decadência dos povos peninsulares. Para Antero, o atraso de pensamento imposto pela ação inquisitorial não nos possibilitou o progresso ofertado pela Modernidade.

No entanto, é preciso pensar com mais cuidado a questão da Modernidade. Em seu ensaio, Antero chega a quase cultuá-la em alguns momentos. Num deles, afirma que

as nações mais inteligentes, mais moralizadas, mais pacíficas e mais industriosas são exatamente aquelas que seguiram a revolução religiosa do século XVI: Alemanha, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos e Suíça.

Pobre Antero! Não presenciou, contudo, a transformação da ciência em cientificismo, tal qual acontecera antes com o cristianismo. Há tempos tornada dogma e tão mecânica quanto a Inquisição, a ciência e seus ideais podem ser vistos hoje como um dos maiores problemas que a humanidade já enfrentou. Pela falta de ética diante de suas descobertas, a ciência se tornou o grande algoz da vida moderna no perpetuar do esquecimento daquilo que corresponderia ao humano do homem. É ela atualmente a nossa sanguinária Inquisição moderna. Suas descobertas, respeitando apenas a lógica liberal-capitalista, forneceram e ainda fornecem a munição necessária para que sejam aniquilados milhares de pessoas no mundo. Em pleno século XXI, não temos possibilidade de pensar em inteligência e passividade em relação às nações citadas pelo poeta. O que pensar das Grandes Guerras empreendidas e financiadas por Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, que por pouco não destruíram toda a comunidade humana no início do século XX? E o que dizer da facínora guerra contra a comunidade civil iraquiana iniciada pelos norte-americanos?

Em verdade, o que subjaz ao fundamentalismo religioso e científico é uma mesma dinâmica: a negação e/ou recusa daquilo que considera seu contrário. Ou seja, pela recusa um do outro ambos se perpetuam na verdade de um corpo sem alma e de uma alma sem corpo. Não percebem que é por se negarem complementares, porque contrários, caminham rumo à aniquilação de si mesmos. No entanto, Antero infelizmente não pôde ser contemporâneo desta época; se o fosse, inteligente que era, talvez mudaria muitos de seus argumentos.

Desdobrada na política, a lógica inquisitorial se fez assim significativa com o absolutismo. Essa é a segunda causa da decadência identificada por Antero. Figurando-se na invasão e concentração de todos os direitos, o absolutismo foi o responsável pelo distanciamento radical entre aristocracia (nobreza) e povo. Aliado aos ditames do Concílio de Trento, a centralização política dinamizada correspondia aos ideais de centralização religiosa institucionalizadas.

Segundo Antero de Quental, os reis nesse momento, extremamente católicos, moviam-se pela religião e não mais pela pátria, empreendendo dessa forma a traição à nação. Para ele, essa traição já fora cometida por D. Sebastião, por exemplo. Além disso, opõe-se ao desenvolvimento da classe média incentivando a perseguição aos povos judaicos e mulçumanos. Ou seja, a Península configurava um esqueleto frágil e debilitado diante do processo industrial-científico pelo qual passava o resto da Europa.

Incentivando uma colonização de exploração cujos lucros não se revertiam para a manutenção das nações, a Península cavou seu próprio sepulcro ao se preocupar apenas com futilidades simplórias e fugazes de sua pseudocorte. O ideal colonizador é, segundo Antero, a terceira causa da decadência, pois a ilusão do espírito guerreiro alimentado pelos peninsulares contrapunha-se ao espírito de trabalho e indústria trazidos pela Modernidade. Esse espírito guerreiro foi ferozmente pensado por Antero a partir de um dos grandes símbolos portugueses: Camões, poeta este cuja simbologia se concentra na impossibilidade da poesia diante da modernidade. É a própria contradição portuguesa que, mergulhada no sepulcro, vislumbra as auroras da glória de tempos longínquos. E foi esse espírito guerreiro às avessas e deslocado de seu contexto que nos deixou uma das maiores heranças da decadência: o espírito servil. Pois, seja lá como for, estamos sempre em busca de governar e sermos governados. Duas faces de um mesmo Adamastor.

Ao final de seu ensaio, Antero diz que a possibilidade de solução para a situação da Península estaria na revolução. Segundo ele, concentrada na paz, somente a revolução poderia converter o mundo velho num mundo novo de tal forma que aquele fosse eliminado para fazer este germinar. Assim, o cristianismo do mundo moderno seria a revolução. Contudo, pensar numa forma de eliminar o passado é ainda se manter mergulhado em dicotomias. É ainda perpetuar o erro histórico. De modo diferente nos mostra o cristianismo ao trazer na imagem-questão de Cristo a harmonização dos contrários. Corpo e espírito, e não corpo ou espírito. Integralidade e não apenas uma superficial conversão de um polo a outro. Entendimento de que o homem só é homem porque e quando mergulhado no humano de sua existência, e não o contrário. Cristianismo? Talvez. Ainda teremos muito que pensar a esse respeito!

Publicado em 06/10/09

Publicado em 06 de outubro de 2009

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