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A descoberta do mundo

Ieda Magri

O que eu quero contar é de um limite traçado por um rio pequeno e fraco que eu juntava com minhas duas pernas. Assim: um lado do rio, sanga, era onde eu moro. Pra ele, a perna direita. O outro lado da sanga era onde os outros moram. Pra ele, a esquerda.

Quando criança, o rio era o até onde eu poderia ir sem pedir permissão a ninguém. O território de caçar borboletas, as raras, azuis. Eram as mais perseguidas. Era pegar uma borboleta, indicador e polegar unidos, retendo, limítrofes, o pequeno ser cintilante. E depois era ir até as margens do rio, já quase menor que eu, crescida de borboleta na mão, com delicadeza pra que não se machucasse em seu debater de liberdade perdida. E soltar. Soltar a borboleta pra saber que terras ela escolheria: se as minhas, se a dos outros. Saber se aquela borboleta me pertencia ou se me desafiava no limite que eu não poderia ultrapassar e se, me desafiando, me ganhava, me convidando à transgressão, a equilibrar o meu peso sobre a parte esquerda do corpo, levantando um vôo mínimo da direita e tomando impulso para as terras estrangeiras.

Bastava a borboleta tomar o caminho para o lugar de onde veio para o meu brinquedo recomeçar, como se até ali nada tivesse acontecido. Mas se a borboleta, felicidade, escolhia o caminho da esquerda, outro mundo de possibilidades se abria pra mim, pequena, diante de uma imensidão de terras verdes com gentes encantadas vivendo dentro de paus podres, embaixo de cogumelos, pequenos smurfs com suas sopas de pedra. Buracos de onde nascia leite e mel, árvores de maná, pássaros dos jardins pisados por Alice.

Os meus colegas, meninos ocupados com seus carrinhos de madeira capazes de levar até duas pessoas a descer pelas encostas mais íngremes, chocando-se com pedras maiores do que os pneus, logo se aperceberam da potência de alegria, promessa daquele brinquedo, voo em tapete mágico.

Até que um dia veio a grande enchente e, da janela, dias e dias, o brinquedo novo era olhar as pequenas casas, as pontes, as botas de borracha, os animais mortos que passavam numa velocidade alarmante pela porta mágica: a sanga que, tão pequena, tinha se tornado um animal bravo e forte. A correnteza e os corpos que se instalaram na garganta do rio levaram as minhas margens, alargaram demais para as minhas pernas aquele limite. Depois que a chuva secou ficou difícil o equilíbrio, o voo da borboleta sem apego a artifícios. O tronco de uma árvore: pinguela, o pé molhado, denunciavam as minhas investidas.

Depois, os dias foram sem borboletas azuis, e a travessia de perder de vista a margem oposta. Dificultosa, mas também de grandes descobertas. Sem o chamado da mãe, sem comida também chamando, com roupas de gente de cidade e de livros embaixo do braço. Já então eu me transformara numa mocinha não muito alta, pensativa, rebelde, tudo misturado a bastante selvageria e alguma timidez.

Publicado em 06/10/2009

Publicado em 06 de outubro de 2009

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