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A maçã de Martim - III

Cláudia Sampaio

Quiero darte una música de espíritu. Música mía de esta cítara plantada en mi cuerpo. Música que hace pensar en el crecimiento de los árboles.

Altazor (1931), Vicente Huidobro.

Ouve-me então com seu corpo inteiro.

Água viva (1973), Clarice Lispector.

Foi por causa daquele feixe de luz, derramado no canto da barraca, que Luana descobriu em Martim um leitor. E ela sorriu quando se concentrou na coincidência da cena: as maçãs aqui misturadas.

A maçã no escuro? Como você consegue tempo para ler?
– Ah, quando a gente quer muito fazer alguma coisa, acaba sempre dando um jeito.
– Tá gostando da história?
– Sim, talvez porque ela fale de alguma coisa que foge ao controle.
– É de amor?
– No fundo todas são. Só que algumas não mostram os horrores que carregamos e vivemos como se eles não existissem. Como quando se precisa matar alguém para continuar vivo.
– Esta é assim? Cruzes! Tô ficando com medo de você.
– Que isso? Não tema, porque estamos falando dos incêndios que a escrita encena, da
“palavra eletrizada de sangue e coração”.
– Bonito. Este é o seu segredo?
– Acho melhor você ler a história.

Então ele se encaminhou para o outro canto da barraca, onde uma senhora o esperava.

No não-barulho de Martim enquanto atendia à freguesa, Luana dizia baixo, em tom suave, “sim, viemos parar aqui” e se distraía com o pensamento: “Eu bem poderia me apaixonar por você por causa desse lindo músculo que salta dos seus braços quando você corta a melancia, ou ainda por esse seu sorriso contido quando me ouve desperdiçando tanto as palavras”.

Martim descascava uma manga, enquanto Luana se movia lentamente na direção dele.

– Quer provar?
– Quero.
– Hum, tá uma delícia.
– Há quanto tempo você trabalha aqui?
– É recente.
– Mas você sempre foi feirante?
– Importa o que sou, ou o que penso?

Mesmo tentando se livrar do preconceito, Luana continuava a achar aquilo tudo muito estranho. Um feirante em águas profundas... E lamentava para si como ainda era verde para a vida. Ora, importava mesmo o que pensavam, sentindo. E isso é tanto que não cabe nenhum acontecimento mirabolante, daqueles que surpreendem o ouvinte.

A reviravolta estava toda neste luar, onde eles agora se encontravam.

E nas rosas que ele lhe dava, colhidas da barraca do português que vivia em Friburgo e lá cultivava exuberantes orquídeas. A cada semana, novas cores, a sensação de que ganhavam o infinito em suas mãos e a certeza de raízes em horizonte quieto.

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Publicado em 13/10/2009

Publicado em 06 de outubro de 2009

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