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Corpo e aprendizagem: a educação em questão

Fábio Santana Pessanha

Mestrando em Poética da UFRJ

De ênfase e tremor banha-se a vista
ante a luminosa nádega opalescente,
a coxa, o sacro ventre, prometido
ao ofício de existir, e tudo mais que o corpo
resume de outra vida, mais florente,
em que todos fomos terra, seiva e amor.

Carlos Drummond de Andrade – Metafísica do corpo

Tratar do corpo é sempre um desafio empolgante. Entusiasma a possibilidade de entrar em contato com algo que nos é ao mesmo tempo tão próximo e distante. Tocamos e sentimos o corpo; no entanto, não dimensionamos sua complexidade. Circundado de mistério e pele, eis o que podemos conceber como uma aprendizagem da corporeidade: um mergulho no que temos de mais nosso e mais outro.

A aprendizagem, quando posta em diálogo íntimo com nossa habitação corporal, se resplandece inacessível a teorias puramente acadêmicas. Encerra numa desmedida infinda o caminho de consumação que é aprender. E esse verbo não pode vir só, pois vislumbramos um desdobramento entre o aprender e o ensinar, configurando o horizonte no qual se espraia o homem.

A educação, podemos dizer, seria esse caminho em que se perdem as retilíneas palavras de ordem. Mais ainda, instaura toda uma complexidade de maturação e maturidade referente à convivência com o diferente, com o além-das-quatro-paredes de uma sala de aula, enfim, com o mundo enquanto transbordamento da realidade imediata.

Tamanha é a capacidade de a educação se mostrar tão diferentemente que nos é permitido trilhar trajetórias que, a princípio, apresentam-se destoantes, contudo convergem para o vigor de sua essencialidade. Assim, é possível recolher uma tessitura multiperspectivada em que poesia, filosofia, cheiro, toque, corpo e aprendizagem são possíveis sem causar danos à aclamada (in)coerência de uma língua beatamente profana ou profanamente beata – que é a Língua Portuguesa.

Partiremos do descostume, retirando da palavra seu lugar comum: o corpo se corporifica em sua aprendizagem de ser, a aprendizagem se desaprende na corporalidade de ensinar, a educação – terra que resguarda cada um de nós – nos oferta a possibilidade de ir e vir nas franjas de sua imensidão. A seguir, na proposição de uma poética educacional, traçaremos uma perspectiva na qual a educação não se restringe à mera área disciplinar, mas assume o devir da apropriação contínua de educar enquanto ser, aprender e ensinar.

Desacostumando o sentido comum de corpo e aprendizagem

Como se dá a relação entre corpo e aprendizagem na educação? Eis uma questão fundamental que precisa ser estudada com cuidado. No entanto, de nada adiantará se não houver compreensão do que sejam corpo e aprendizagem em suas dinâmicas essenciais. Nesse caso, antes de pensarmos a relação com a educação, dialogaremos, ainda que brevemente, com o sentido poético-filosófico dos termos supracitados.

Ao mencionarmos o poético, não nos reportamos à produção textual de poemas ou a obras literárias, mas ao agir originário; portanto, à poíesis. Ao tomarmos tal atitude, poderemos pensar o corpo e a aprendizagem superados da utilidade prática ou estética (no caso do corpo) tão enfatizadas nos discursos. É uma tentativa de apreender o corpo como reinvenção corporal em sentido e verdade, à luz do pensamento grego; e a aprendizagem como consumação do aprender, isto é, apropriação contínua do átimo de passagem entre não-saber e saber.

A acepção mais comum que temos de corpo é aquela dada em sua oposição com alma: um organismo bifurcado. Essa perspectiva nega o corpo ao afirmar a alma, e esta, por sua vez, ao ser negada, afirma o corpo. Assim, temos a ratificação da modernidade instaurada por Descartes quando a unidade do corpo foi separada numa dualidade opositiva: a res cogitans (o raciocínio) e a res extensa (a matéria). No diálogo poético, entendemos que “corpo seria, pois, cooriginário com vida ou o mesmo de vida” (Fogel, 2009, p. 36). Isso significa que o corpo é uma concrescência fenomênica, ou seja, a pulsação de vida em cada gesto, a consumação da história na experiência da existência humana.

O corpo é um “entre” que congrega em sua permanência a tensão entre percepção (nous) e sensação (aísthesis). Nessa relação há uma copertinência em que uma realidade é inaugurada em sua mútua interpelação perceptivo-sensorial. Essa movimentação do real assinala a dinâmica do velar-autovelante da realidade enquanto verdade; portanto, como alétheia. Melhor explicando, temos o corpo como interação entre a percepção – que capta e vê a essência das coisas – e a sensação – que revela uma experiência de constituição do saber para além do que os sentidos disponibilizam (Heidegger, 2007, p. 204; p. 251). A experiência que temos com os sentidos se configura como presencialidade, isto é, eles conduzem àquilo que se apresenta à visão; logo, percebemos tudo que sentimos. Por isso, a separação entre percepção e sensação, ideia e representação não pode ser aceita como determinação conceitual. Essa relação explicita a afirmação da leitura cartesiana, cujo empenho se solidifica na tradição filosófica, fortemente cravejada pelo encaminhamento retórico-sofístico: “Kant, no rastro de Descartes, separa o que jamais houve separado e então, por isso, depara-se com a tarefa de reunir, de sintetizar o que jamais se separou ou houve separado” (Fogel, 2009, p. 54).

O pensador originário Heráclito de Éfeso, em seu fragmento 50, já convocava a unidade manifestada na complexidade do corpo: “Auscultando não a mim mas o lógos, é sábio concordar que tudo é um” (Heráclito, 1991, p. 71). Ora, esse “tudo é um” invita a vigência das diferenças que fundam a identidade de um ente. Neste caso, podemos relacionar a luminosidade corporal de o homem ser, ao mesmo tempo, organismo biofisiológico e habitação do porvir histórico-existencial. Existência aqui remete à presença, ou seja, àquilo que se mostra à visualização.

Podemos fazer a relação entre corpo e aprendizagem na medida em que entendemos que o corpo é um movimento de consumação de sua deveniência histórica e que aprendizagem é a apropriação do que nos é próprio. Em outras palavras, essa apropriação da apreensão é inerente à aprendizagem, posto que não aprendemos o que vem de fora, mas trazemos ao recolhimento de nossa travessia aquilo que estava velado na potencialidade de nosso existir enquanto não-aparecimento; portanto, o que ainda não se apresentou.

A aprendizagem reclama, em sua vigência, um encaminhamento experiencial. Se dialogarmos com o sentido grego, entenderemos esse processo pelo radical mantháno, isto é, um duplo movimento de ensinar e aprender no qual o ínterim da dinâmica resguardava a aprendizagem como possessão: “Aprender-e-ensinar é pois a identidade e diferenciação de nossas diferenças com a realidade, tanto com a realidade que nós mesmos somos como com a realidade que nós mesmos não somos” (Leão, 1977, p. 49).

Não estamos acostumados a prestar atenção ao que não somos, porém só podemos ser o que somos porque – e inevitavelmente – estamos em plena realização do que não-somos. O problema é que já estamos tão inseridos num mundo cujas experiências apontam à obtenção de certezas que a ciência e sua necessidade de dizer o que é sem em muitos casos não se virar ao que não é se posicionaram como a realidade preponderante.

Estamos trilhando em apontamento ao homem, haja vista que não poderemos partir de nenhum lugar que não seja da realização do humano no homem. Enquanto homens, somos a tensão entre vida e morte tocados pela figuração autopoética de ser. Esta autopoiese reclama tanto o movimento de apropriação inerente à aprendizagem (autós)quanto à dimensão poética de acontecer (poíesis), isto é, simultaneamente afirmamos nossa identidade no fluxo das diferenças e nos entregamos ao devir que é existir. Nesse sentido, a educação deflagra o ambiente no qual essas tensões se reúnem especificamente e engendram a relação com as questões de ensino e aprendizagem à luz da criticidade poética.

Corpo e aprendizagem se entremeiam na medida em que se tornam questões. Corpo como questão deixa de ser um conceito fixo para se dar como insurgência continuamente inaugural de pensamento. O mesmo acontece com a aprendizagem, pois rechaça a estaticidade própria da aplicação conceitual e insufla de possibilidades de trânsito um sem-caminho meramente teórico.

A educação ganha corpo e se manifesta como aprendizagem, torna-se uma questão primordial cuja trajetória redimensiona a maneira de lidar com as situações próprias de seu cotidiano. Afinal, se “a educação é um lugar onde toda nossa sociedade se interroga a respeito dela mesma” (Gadotti, 2004, p. 43), devemos fundamentalmente fazer jus ao sentido de apropriação do que somos enquanto corpo na vigência da aprendizagem, percebendo a educação como questão. Há aí o ensejo à autoescuta, isto é, para que pensemos a autointerrogação mencionada na citação anterior é necessário que antes olhemos para nós e, a partir de nossa constituição poético-telúrica, consigamos nos desdobrar no que assumimos como a nossa habitação. Isso quer dizer que somos diálogos em concrescência, já que crescemos junto com as questões que em nós irrompem.

Uma política poética para a educação

Um dos problemas da educação, poderíamos propor e pensar, é que ela é vista como área disciplinar, presa à sala de aula. Enquanto a educação estiver restringida pelos “teóricos das escolas”, sua retórica de limitação continuará se desenvolvendo. Em outras palavras, o ato de educar transpõe mera atitude de dizer o que é algo, isto é, não se encerra num movimento de trazer para dentro uma experiência externa, conforme já dissemos ao discutirmos a aprendizagem. Nesse sentido, educação não pode ser vista a partir de uma ótica serviente na qual não se prescinde de um uso, de uma finalidade.

Retomando Gadotti, quando discute o papel da filosofia e da educação relacionadas com o homem (2004, p. 63), ele explicita uma necessidade de porquês, pergunta pela utilidade da educação e seu dimensionamento no homem. Ora, essa trajetória desimplica a educação de sua vigência corporal e desdobrada na aprendizagem enquanto questões para definir uma função ou, como se evidencia em seu texto, uma práxis. De certa forma, podemos dizer que ele engendra uma autocontradição que, no entanto, não é incoerente com sua proposta, mas realoca a educação e, no caso, a filosofia, na tradição retórico-sofística que até então se afirma no percurso da modernidade à pós-modernidade. Apesar desses dizeres, não intencionamos avaliar a conduta do autor citado, até porque seus encaminhamentos enriquecem nosso diálogo, à medida que trazemos para o âmbito do incurso poético-ontológico a explanação pedagógica de uma educação prática – haja vista algumas diferenciações feitas entre um filosofar meramente reflexivo e um “engajamento real” (p. 50). Então supomos que esse real esteja na dimensão do que seja concreto e que, por vez, esse concreto se reduza à materialidade fixa, ao sinônimo de continente de massa em vez de atentar à sua etimologia – concrescere, palavra latina que significa “crescer com”; portanto, evoca a realização contínua de desabrochamento do real (Leão, 1991, p. 173).

A educação não pode figurar no patamar da concretude material, mas no de concretude poética – conforme já tratamos –; logo, enquanto movimento da poíesis. Esse modo de encorpar a educação traduz uma apreensão do próprio do educar, ou seja, aquilo que se apresenta como questão imanente da educação e que em nós brilha mas se mantém ofuscada nos calabouços da retidão social.

A sociedade, como entendemos – e cremos se ramificar na ruminação acrítica –, é o carrasco da formalização. Aponta os bons costumes e molda a inocência infantil na famigerada deturpação adulta de racionalização do imaginário. Eis o senso comum educativo: a formatação nas leis de convivência política. A questão que, no entanto, ficou obliterada foi que se deixou de pensar o político enquanto envio do real. Aqui a pólis se reduziu ao partidarismo, ao político como manutenção ideológica de esquerda ou direita. Por mais que ainda se entenda o político como um modo de organização da sociedade, este perde sua densidade quando se estabelece como detentor dos modos de representação de permanência no convívio com o outro sem que se entenda o próprio do educar.

A aprendizagem é trocada pelo aprendizado, pela imediatez dos resultados. Embora pareça uma redundância isso que acabamos de dizer, quando prestamos atenção ao que as palavras silenciosamente nos dizem percebemos o mundo que deixamos de abraçar por sermos constantemente desatentos, por não sabermos escutar. Assim, seguindo o encaminhamento que propomos para este texto, podemos pensar que, diferente de aprendizagem, aprendizado é o já posto conceitualmente e que obedece a um estatuto de sujeição, ou seja, é o quantitativo absorvido e “somado” ao conjunto de saberes do indivíduo. Então se pode até se ensinar o saber, mas nunca a sabedoria, como diz o poema:

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá
mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem
nos encantos de um sabiá.

Quem acumula muita informação perde o condão de
adivinhar: dinivare.

Os sabiás divinam.
(Barros, 1998, p. 53)

Uma perspectiva para se pensar...

A partir do que traçamos no decorrer deste trabalho, podemos criticar a educação como uma prática material, como o resultado de implementações burocráticas. Sabemos que essas esferas são importantes à constituição do pensamento em relação ao educar, só não podem ser a única faceta de sua realização. Do contrário, o corpo é esquecido e posto como argamassa biológica e a aprendizagem se iguala ao aprendizado, reduzindo-se ao simples acúmulo intelectual.

Pensar o corpo e a aprendizagem na dinâmica educacional é bastante difícil. É um percurso extremamente denso e exige, primordialmente, autoescuta. Saber ouvir e conviver com as experiências que nos fundam e nos aprofundam humanamente significa a assunção da liminaridade de ser homem e concrescer em sociedade. A permanência do poético no gestual do corpo inaugura uma aprendizagem essencial no diálogo com a educação. O corpo deixa de ser depositário da alma; a aprendizagem galga o fluxo contínuo de ensinar e aprender na plenificação experiencial de ser, e assim o real acena e se ordena de múltiplas maneiras, revelando realidades que se interpenetram e configuram as modalidades de apresentação do cotidiano.

Enfim, a educação retoma continuamente a questão do humano, ao passo que eleva o corpo e a aprendizagem enquanto caminhos de apropriação do que a nós sempre pertenceu. Eis uma pertença originária que funda os descaminhos específicos do ensinar e aprender, isto é, referimo-nos ao originário porque faz nascer continuamente os caminhos enviesados da educação numa perspectiva poética e concernente ao indizível do existir.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond. Metafísica do corpo. In: Corpo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1984.

BARROS, Manoel de. 9. In: Livro sobre nada. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.

FOGEL, Gilvan. Notas sobre o corpo. In: CASTRO, Manuel Antônio de (org.). Arte: corpo, mundo e terra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.

GADOTTI, Moacir. Pedagogia da práxis. 4ª ed. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire, 2004.

HEIDEGGER, Martin. Ser e verdade: a questão fundamental da filosofia; da essência da verdade. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007.

HERÁCLITO et alli. Os pensadores originários: Anaximandro, Parmênides e Heráclito. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 1991.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprender e ensinar. In: LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1977.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Heidegger e a Modernidade: a correlação de sujeito e objeto. In: Aprendendo a pensar. Vol. II. Rio de Janeiro: Vozes, 1991.

Publicado em 06/10/2009

Publicado em 06 de outubro de 2009

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