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Descartes e as ideias materialmente falsas

Mariana Cruz

Para o filósofo francês René Descartes, toda ideia é a representação de alguma coisa determinada, isto é, de um objeto que, por sua vez, é uma entidade na consciência. As ideias nos remetem a algo distinto de nós. Pelo fato de representar um objeto, a ideia tem realidade objetiva. Realidade objetiva é algo que pode existir independentemente do sujeito, mesmo que seja o conteúdo de uma ideia que esteja dentro do sujeito. Por exemplo: a ideia de uma cadeira está na mente do sujeito, mas seu conteúdo é objetivo. Como então se explicam as ideias materialmente falsas, já que tais ideias, apesar de serem representações, não representam coisa alguma, isto é, apontam para algo diferente de nós, que nada revelam? Será possível pensar em uma representação de nada?

Normalmente, o tema das ideias materialmente falsas está atrelado a ideias secundárias como dor, frio, calor. Algumas ideias sensíveis podem ser consideradas materialmente falsas, uma vez que não representam coisa nenhuma, nada de real. As ideias materialmente falsas são sensíveis, mas nem todas as ideias sensíveis são materialmente falsas. Essas ideias são consideradas representações, porém não representam coisas nem objetos; representam o que não é como se fosse alguma coisa, exibe como possível o que não é possível.

Segundo Descartes, sentimentos e sensações como dor, prazer, fome, são a prova da união entre alma e corpo. A principal função das ideias sensíveis (o apetite, por exemplo) é identificar o que convém ou não convém à conservação de nosso corpo, isto é, denotam o que é ou não benéfico para nós. As ideias sensíveis são signos do que nos é útil, porém por vezes são tomadas, equivocadamente, como representantes de propriedades objetivas.

Os modos de união entre corpo e alma são divididos em três aspectos: as sensações (propriedades dos corpos percebidas pelos sentidos externos), os afetos (sentimentos ou maneiras de pensar causadas pela alma mas que têm ligação com o corpo, como o amor, a ira, a tristeza) e apetites (necessidades fisiológicas, como a fome, a sede etc.). Os afetos e os apetites são considerados também sensações internas.

Quando são ativos, os modos de pensamento são denominados vontades; quando passivos (por parecerem conformar-se ao objeto que representam), são considerados percepções.

As ideias imaginativas, como a ideia de um centauro, vêm do ato de conectar a ideia de cavalo com a ideia de homem; este é um ato da vontade, porém a ideia de cada um dos elementos é dada pelo entendimento.

As sensações podem ser consideradas ideias sensíveis na medida em que são causadas por objetos externos e parecem trazer propriedades destes, como som, cor, figura, movimento. Os afetos parecem ser causados pela própria alma, da mesma forma que os apetites, que por sua vez também se assemelham às sensações, na medida em são signos, não das propriedades dos corpos, mas sim dos estados corporais. Descartes analisa a natureza do sentir corporal e espiritualmente. A parte do pensamento que “sente” é aquela que recebe o que vem de fora pelos sentidos, pela visão, pela audição, pelo tato, entre outros; tal recebimento parece ocorrer em virtude da ação dos corpos exteriores sobre o corpo humano, isto é, parecem ser verdadeiramente coisas vindas de fora, independente da vontade do sujeito. A presença do objeto se impõe a ele, quer dizer, não é possível não tomar consciência do objeto quando se está diante dele. Não depende da vontade do sujeito sentir frio ou calor, por exemplo.

No parágrafo 24 da Meditação Sexta, Descartes afirma que a alma está misturada ao corpo, mas não como uma relação entre o piloto e seu navio que, se houver um buraco no navio, o piloto nada sente. Conosco não acontece isso: os apetites testemunham que essa união entre alma e corpo é uma verdadeira mistura: o que é sentido no corpo também é sentido na alma.

Tais sensações ou ideias sensíveis são causadas por corpos exteriores que são representados no sujeito – o substrato delas – através de suas qualidades como cor, temperatura, gosto. Descartes considera tais tipos de ideias obscuras e confusas e, por isso, são consideradas materialmente falsas, uma vez que não se sabe se o que elas representam são coisas reais, quimeras, ficções ou não representam coisa alguma. Caso sejam quimeras, não apresentam realidade objetiva; sendo assim, não são representações. Mas o que de fato seria considerado uma quimera? Uma sereia, por exemplo, é algo que não existe na realidade, mas, através da composição de ideias, podemos formar algo que seria possível de representar. Ou quimeras são coisas que não podem existir de fato, coisas que não podem ser representadas? A sereia pode existir, apesar de não existir. Muito mais grave é considerar que pode existir aquilo que não existe (não se trata aqui somente de contradições formais, como um solteiro casado ou um quadrado redondo, e sim de algo que, apesar de não implicar uma contradição, não tem, nem pode ter realidade objetiva). Quimeras podem ser interpretadas de dois modos: como ficção (objeto possível) ou como um objeto impossível (como um quadrado redondo). A ideia de um objeto impossível é uma não-ideia. Como detectar se a ideia é de um objeto possível? Deve-se, assim, fazer uma distinção entre ficção e essência, e o que marca tal distinção é o critério de clareza e distinção. Quando o objeto obedece tal critério, ou seja, quando ele é percebido clara e distintamente, trata-se de uma essência.

Possível é o que concebemos clara e distintamente e que não envolve contradição. Assim, podemos considerar sentimentos (como a dor) uma ideia materialmente falsa. Apesar de ser inconfundível que tenhamos consciência da dor que estamos sentindo, essa mesma dor é algo obscuro e confuso. No caso de uma dor de dente, por exemplo, não sabemos se o que está doendo é o nervo ou o dente, da mesma forma que podemos considerar materialmente falsa a ideia de uma cadeira azul, pois temos a falsa sensação de que o azul pertence à cadeira. Mas a cor é uma qualidade secundária, não essencial à cadeira; no entanto, atrelamos uma coisa à outra, consideramos “azul” e “cadeira” como coisas intrínsecas, o azul como algo pertencente à cadeira, o que de fato não é. Trata-se de uma sensação equivocada, isto é, de uma ideia materialmente falsa.

Como, para Descartes, o critério de clareza e distinção é o que serve para considerar algo verdadeiro, tudo aquilo que é obscuro e confuso – como a ideia de cor, temperatura (afinal o frio é uma realidade em si ou é uma ausência de calor?), sentimentos como dor – é considerado ideias materialmente falsas.

Referências

DESCARTES. R. Meditações. In: Os Pensadores. Tradução J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
LANDIM FILHO, R. F. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Loyola, 1992 (Coleção Filosofia, 23).

Publicado em 13 de outubro de 2009

Publicado em 06 de outubro de 2009

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