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Ecce Homo
Pablo Capistrano
Escritor, professor de filosofia
Crônicas filosóficas
Não sei se você sabe, mas eu estudei em uma escola católica até concluir o meu Ensino Fundamental. Na época, em Natal, minha cidade, não havia muitas opções. Lembro que, naquele tempo, tínhamos aula de religião e geralmente elas eram, na verdade, aulas de uma única religião: o cristianismo católico. Costumeiramente a gente se deslocava até a sala de projeções onde uma freira exibia rolos e rolos de filmes religiosos em um Super-8 (sim, eu sou de um tempo em que videocassete era um artefato de alta tecnologia). Lembro com mais intensidade, até hoje, dos filmes sobre os episódios do Velho Testamento, mas também lembro de uma intuição estranha que eu tive quando assistia a um episódio sobre a vida de Jesus.
Espantou-me muito que Deus tenha encarnado, se manifestado em carne e sangue na Terra e que sua divindade não tenha sido reconhecida de imediato por toda a humanidade. O que havia de errado com o homem para não reconhecer Deus quando Ele se manifestasse? Que Deus era esse que não era reconhecido nem pelos seus próprios filhos? Onde estaria o problema: na criatura ou no criador? Anos depois, junto à minha incapacidade de decorar o Credo católico, acabei tomando aquela intuição como um sinal de minha pouca fé ou da incoerência de pensar que Deus possa ter tomado a forma de um homem.
Hoje, um pouco menos atado à literalidade do relato bíblico e mais afeito a leituras pouco ortodoxas da história de Jesus, percebo que a mais significativa mensagem por trás do descompasso da crucifixão é a de que a humanidade não consegue enxergar sua própria sacralidade.
Se há uma grande inovação no cristianismo em relação ao judaísmo que o gerou, está justamente no fato de que o cristianismo é uma religião que se pretende universal. O que isso significa? Ao contrário das religiões étnicas ou geográficas, que eram transmitidas hereditariamente a partir do sentimento de pertencimento a um grupo, a uma comunidade ou a um lugar, o cristianismo se direcionava à humanidade a partir de um sentimento de comunhão e de unidade envolvendo qualquer raça, qualquer sexo, qualquer classe.
O princípio fundamental de fraternidade cristã contém uma mensagem revolucionária porque quebra limites impostos pelas sociedades antigas, divididas em castas e separadas radicalmente em uma dialética que opunha senhores e escravos. As catacumbas do cristianismo primitivo eram espaços de comunhão, locais onde os escravos e os senhores perdiam suas antigas referências e sua estratificação social e eram enterrados lado a lado, como humanos simplesmente humanos.
Montaigne escreveu nos seus ensaios: “Nada do que é humano me é estranho”; esse bem poderia ser o mote do cristianismo primitivo, ou talvez de algumas de suas versões, que se multiplicavam pelo império romano, fundindo-se e se miscigenando com outras seitas, como o mitraísmo ou os cultos dos mistérios de Eleusis e Dionisus.
A estranheza da mensagem cristã estava nessa radical ideia de que havia uma unidade fundamental que ligava os sujeitos. Essa era a unidade trágica do cristo, que, antes de ser um homem ou um deus, era um termo que fazia referência à própria humanidade. Hoje, quando um papa afirma que a humanidade precisa “ser salva” do comportamento homossexual como o meio ambiente precisa ser salvo do desmatamento, eu suspiro e penso que continuamos tediosamente a não reconhecer a sacralidade do humano. Continuamos a cuspir no rosto desse cristo desconhecido, negligenciado por aqueles que lhe são iguais.
“Nada do que é humano me é estranho”. Essa mensagem desapareceu em algum ponto do caminho da religião cristã. Vez ou outra (por suas próprias autoridades) percebemos a justificativa de tipos tão variados de exclusão que levam os cristãos a comungar do mesmo ódio e da mesma prática classista, sexista, etnocêntrica, como se o cristianismo fosse mais uma dessas crenças de separação e de exclusão.
Não importa se você está queimando judeus ou condenando o “comportamento homossexual”. Talvez o pecado (na mente de alguns) fique tão ligado ao pecador que não seja possível acabar com o primeiro sem destruir o segundo; no limite desse sentimento de purificação perde-se a dimensão fundamental da humanidade e passa-se à repetição dos mesmos expedientes de massacre, espoliação, destruição e escravização que se repetem na história dos homens.
Werner Jaeger (um dos principais estudiosos da cultura clássica) diz que, quando os primeiros cristãos apareceram pelas cidades gregas da costa da Turquia, os helenos não entenderam aquela estranha seita como uma religião. Para eles, aquilo era mais uma escola de Filosofia. Eles puderam enxergar que havia uma base ética e uma metafísica latente que distinguiam o cristianismo dos cultos pagãos. Com o tempo, o cristianismo esvaziou esse conteúdo ético e perdeu-se em uma ritualização vazia. Hoje, 2.000 anos depois, o Jesus dos cristãos às vezes aparece na TV como um clínico geral, um terapeuta de casal ou como um corretor de imóveis. Às vezes ele permanece apenas como um simples quadro na parede, uma sombra em meio a um punhado de palavras incompreendidas ou a justificação para um conjunto de práticas mais ou menos automáticas. A utopia cristã ainda nos é estranha, e a tarefa de reconhecer a sacralidade no humano (às vezes esquecida, às vezes simplesmente negada) ainda surge como uma obra em construção – que talvez nunca se complete.
Publicado em 06/10/2009.
Publicado em 06 de outubro de 2009
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