Ações afirmativas na Administração Pública Federal: a política multicultural da lei de cotas no serviço público

Antonio Gomes da Costa Neto

Mestre em Educação, doutorando em Ciências Sociais (UnB)

Introdução

O artigo tem como objetivo fazer uma análise do Programa de Ações Afirmativas[1] para negros no serviço público federal, destacadamente no tocante à reserva de vagas destinadas aos concursos públicos da administração pública, buscando compreender os efeitos da Lei Federal nº 12.990/14 em relação às políticas públicas até o exercício de 2015.

Nesse sentido, o trabalho abordou o “acompanhamento e avaliação” pelo órgão de promoção da igualdade étnica, uma vez que o prazo de duração do Programa de Ações Afirmativas no mercado laboral na Administração Pública Federal é de 10 anos, consequentemente, em razão da sua provável extinção no exercício de 2024.

A política de reserva de vagas para negros é reconhecida como legítima e temporária; significa que será limitada ao tempo de sua vigência, fato corroborado quando do julgamento perante o Supremo Tribunal Federal[2], conforme decidido na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 186), quando do julgamento do programa nas instituições de ensino superior.

Diversos governos da América Latina têm incluído em suas agendas governamentais, por leis ou mesmo pela criação de instâncias administrativas que tratam da problemática do negro; dentre algumas propostas podemos destacar no Brasil as políticas de ação afirmativa “com o estabelecimento de cotas raciais na universidade e no serviço público” (Lemos Igreja; Agudelo, 2014, p. 16).

De acordo com esses autores (p. 21), as ações afirmativas estão inseridas como “políticas compensatórias que visam reparar injustiças do passado”, nesse tocante como fundamentais para a inclusão social, tornando necessário um sistema de avaliação que tenha capacidade de demonstrar o grau de inclusão da população negra e de concretização desses direitos.

No caso brasileiro, a ação afirmativa no setor público (administração federal), cuja temporalidade de 10 anos entre seus objetivos deverá ser capaz de demonstrar sua “eficácia social[3]”, nesse prisma entende-se como os resultados alcançados devem ser capazes de justificar sua manutenção quando do momento de sua avaliação anual, bem como no prazo final da lei de igual sorte provar sua eficácia ou mesmo a necessidade de sua prorrogação.

Nossa hipótese de análise tem como escopo verificar como vem sendo implantada a lei de ação afirmativa no serviço público federal, especialmente quando da análise do sistema de acompanhamento e avaliação junto ao órgão de política de promoção da igualdade racial, e como tem sido sua operacionalização.

Foram utilizadas consultas a bases de dados do sistema de administração disponíveis de forma aberta ao cidadão, bem como a análise documental do sistema de avaliação das políticas de ação afirmativa no serviço público federal e documentos recolhidos pela Lei de Acesso a Informação (LAI) quando não públicos.

Breve histórico da ação afirmativa: a Lei nº 12.990

Podemos assinalar que o direito à ação afirmativa está consagrado no cenário mundial (Costa Neto, 2015; Feres Júnior, 2006), além de estratégia de combate à discriminação (Gomes, 2001a; 2001b); tem sido utilizado por diversos Estados da América Latina.

No tocante às propostas em relação à população negra brasileira, em termos institucionais sua primeira referência se operou a partir do Decreto nº 1.904, de 13 de maio de 1996, quando estabeleceu o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-[1] Revogado pelos Decretos nos 4.229/02 (PNDH-2) e 7.037/09 (PNDH-3).), em que cita a necessidade de estímulo às ações afirmativas, na primeira gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995/1998), além de discussões em julho do mesmo ano organizadas pelo Ministério da Justiça (Guimarães, 2009).

Na vigência do PNDH, amparando-se em diversos diplomas legais internacionais, o Ministério da Justiça (Portaria nº 1.151, de 20 de dezembro de 2001.), no exercício de 2001, no segundo governo de FHC (1999/2003) instituiu de forma pioneira o Programa de Ações Afirmativas no setor público, propondo metas de ocupação de afrodescendentes (20%), mulheres (20%) e deficientes físicos (5%) em cargos de assessoramento superior, convênios, licitações e nas contratações do serviço público.

Porém, em nível mais abrangente na esfera do serviço público federal, houve a edição do Decreto Presidencial nº 4.228, de 13 de maio de 2002, determinando a aplicação de políticas de ação afirmativa no setor público a todos os órgãos vinculados ao Poder Executivo federal.

Na vigência do Decreto nº 4.228/02 e do PNDH-2 (Decreto nº 4.229/02), o Ministério da Cultura - Minc (Portaria nº 526, de 22 de agosto de 2002.) em 2002 recepcionou em sem âmbito institucional o Programa de Ações Afirmativas nos mesmos moldes e percentuais do Ministério da Justiça, o que se pôde interpretar como uma política de governo dando continuidade aos programas governamentais, todavia a Portaria ministerial não estabelecia se o seu objetivo era cumprir o Decreto nº 4.228.

Esse decreto apresenta algumas inovações jurídicas até então ausentes nas portarias ministeriais quando instituiu o Programa Nacional de Ações Afirmativas (PNAF) na Administração Pública Federal, estabelecendo sua coordenação pela Secretaria de Estado de Direitos Humanos do Ministério da Justiça[4], porém não discorre sobre percentuais específicos.

O PNAF estabelece a observância de metas e percentuais de participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas com deficiência nos cargos em comissão do Grupo de Direção e Assessoramento Superiores (DAS[5]); o seu monitoramento e acompanhamento competem para seu efetivo cumprimento.

Do mesmo modo, prevê a inclusão quando da transferência de recursos, de cláusulas de adesão ao programa, no sentido de garantir a participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas com deficiência, propondo uma gestão estratégica no sentido da maior participação desses grupos no serviço público.

Dispõe sobre a observância de uma pontuação adicional nas licitações da Administração Pública Federal, quando verificado que os fornecedores, licitantes e demais interessados em negociar com a Administração Pública aderissem ao plano, novidade que despertaria o interesse dos contratantes com o serviço público.

Por derradeiro, narra a inclusão na contratação pelas empresas prestadoras de serviços de técnicos e consultores de projetos, além do estabelecimento de metas percentuais que deveriam ser cumpridas; consequentemente, poder-se-ia considerar como a fase inicial para o setor privado de recepção das ações afirmativas.

Em tese, desde o ano de 2002, encontra-se em vigor o decreto presidencial perante a Administração Pública Federal, das quais há de se observar metas com percentuais para inclusão, além da observância para preenchimento do alto escalão da Administração Pública Federal, contratos, licitações e demais repasses financeiros, cuja competência de avaliação seria realizada por um comitê de avaliação, formado por diversos órgãos da administração pública, tem função de avaliação e acompanhamento do programa.

Somente em 2010, com o advento do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/10), se estabeleceu inovação sobre as ações afirmativas no mercado de trabalho no setor público e como de “incentivo” no âmbito privado, cujas regras deveriam observar o princípio da proporcionalidade de gênero[6].

Com o intuito de implantar o sistema de ação afirmativa no serviço público, o Poder Executivo Federal, pelo do Projeto de Lei nº 6.738/13, propôs a regulamentação do Estatuto da Igualdade Racial, porém tão somente em relação aos cargos e empregos públicos da União ( a lei proposta teria alcance apenas para a administração pública direta e indireta do Poder Executivo Federal), sem fazer alusão ao princípio da proporcionalidade de gênero, resultando dessa maneira na Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014, cuja vigência temporal de 10, com a necessidade de avaliação anual, monitoramento, publicidade e eficácia social em relação à população negra nos certames destinados ao provimento desses cargos.

A lei não se destinou aos Poderes Judiciário e Legislativo; no primeiro foram estabelecidas em 2015[7] ações afirmativas para negros nos concursos públicos; por sua vez, no segundo foi noticiada proposta similar[8], porém sem sua confirmação, além de um questionamento perante o Supremo Tribunal Federal em sede de mandado de segurança (33.072-DF).

No exercício de 2016, em função de algumas sentenças judiciais contrárias ao Programa de Ações Afirmativas no setor público, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil houve por bem, após articulações dos integrantes da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra do Brasil daquela ordem, propor uma Ação Direta de Constitucionalidade (ADC 41/2015) junto ao Supremo Tribunal Federal.

O campo de análise: dialogando o conceito

Daflon, Feres Júnior e Campos (2013, p. 306), ao definir as ações afirmativas como “medidas redistributivas que visam a alocar bens para grupos específicos”, diferenciam-nas das políticas antidiscriminatórias de caráter meramente punitivo.

A importância dessa ação e inclusão nas agendas governamentais tem relação direta com as intervenções do movimento negro (Daflon; Féres Júnior; Campos, 2013; Lemos Igreja; Agudelo, 2014; Silva, 2012), demonstrando a importância dos movimentos sociais para realização e concretização de direitos (Sousa Júnior, 2015).

De acordo com Gomes (2001), a adoção de ações afirmativas tem relação com a estratégia de combate à discriminação, não apenas inserindo a proibição; postula que se deva ir muito além, ou seja, no sentido de promover e tornar um princípio, apesar de a sociedade estar fortemente ligada a tradições, costumes e histórias em sentido contrário.

Gomes acrescenta que a ação afirmativa, para que tenha eficácia de transformação social, dentre as diversas políticas de reconhecimento, representaria em parte uma busca pela eliminação de práticas discriminatórias, além de contribuir para eliminar os efeitos persistentes (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado, que tendem a “se perpetuar”.

De igual sorte, entre seus objetivos estaria garantir a maior representatividade dos grupos minoritários nos mais diversos domínios de atividade pública e privada, uma vez que estes não são representados em certas áreas.

Destaca que uma das funções das ações afirmativas é o “estabelecimento da diversidade e representatividade propriamente ditas, é eliminar as barreiras artificiais” (Gomes, 2001, p. 48) que emperram os avanços dos negros, e sua implantação acarretaria inegáveis benefícios para o próprio país e acentuar a garantia de uma “pujança econômica da nação”.

Nesse passo o surge o multiculturalismo nas ações afirmativas, local em que encontram sustentação (Gomes, 2001), em que os critérios universais, quando se discute a possibilidade de uma neutralidade do Estado, remetem-nos à discussão sobre o reconhecimento e a identidade.

Ou seja, há duas teses de reconhecimento: i) sobre a esfera íntima; ii) sobre esfera pública. Essas duas situações podem ser analisadas a partir da igualdade de direitos e podem ser concebidas a partir de normas proibitivas ou integrativas (afirmativas).

Vale assinalar que as críticas exercidas por alguns setores do movimento negro ao multiculturalismo, considerando tendência neoliberal (Lemos Igreja; Agudelo, 2014), como se verifica no caso brasileiro, ainda que insuficientes, têm sido a forma usual dos modelos de políticas em favor da população negra.

Da política governamental

Para compreender como se processa o acompanhamento e avaliação das políticas de ação afirmativa no serviço público, necessariamente há de se identificar a existência (ou não) de relatório de avaliação do Programa de Ações Afirmativas previsto pelo Decreto Presidencial nº 4.228/02 e da sua consecução nos Ministérios da Justiça e Cultura.

Em nossa análise, ao compulsar os arquivos eletrônicos dos órgãos em referência (MJ e MINC), procurou-se localizar a existência de dados sobre as ações afirmativas propostas pelo Decreto e Portaria Ministeriais, especialmente quando observados seus relatórios de gestão. Dessa pesquisa constatou-se que nenhum dos órgãos responsáveis pelas medidas em suas páginas eletrônicas de acesso livre logrou constatar a existência de informações que identificassem os resultados obtidos, ou mesmos os percentuais alcançados pelas Portarias Ministeriais; colheu-se apenas a informação da existência da norma legal, não assinalando sua revogação, derrogação ou aplicação; em tese, está em plena vigência.

Por sua vez, em pesquisa realizada no sistema Scielo (Scientifc Electronic Library Online), identificaram-se alguns trabalhos acadêmicos com alusão à existência da Portaria Ministerial, apenas sob o ponto de vista da existência da norma legal; por sua vez não se logrou narrar informações sobre sua aplicação, ou mesmo se deteve a analisar os resultados do programa governamental junto aos ministérios.

Todavia, em relação ao Decreto Presidencial nº 4.228/02, por se constituir em norma de aplicação geral na esfera administrativa da União Federal, pois exarada pelo Chefe de Estado procedido à pesquisa na página eletrônica do órgão responsável pela avaliação, de igual sorte não logramos encontrar qualquer alusão ao tema.

Não se verificando qualquer informação nesse sentido, e considerando o fato de a Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, pela elevação ao grau de ministério no ano de 2003, posteriormente na condição de Secretaria de Direitos Humanos, utilizou-se a Lei de Acesso a Informação (LAI) para certificar-se de dados sobre o tema.

Indagado se o órgão de dispunha do relatório de avaliação efetuado pelo Comitê de Avaliação e Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas instituído pelo decreto, seus integrantes, resultados e divulgação, no período compreendido de 2002 a 2013, em caso positivo, o fornecimento dos dados ou mesmo a indicação do local para sua consulta, a resposta foi a seguinte:

A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República não dispõe, em seus registros administrativos, da composição do Comitê de Avaliação e Acompanhamento do Programa Nacional de Ações Afirmativas, previsto no Decreto nº 4.228/02. Destacamos, nesse sentido, que, em seu artigo 4º, § 2º, o Decreto prevê que os membros do Comitê serão indicados pelos titulares dos órgãos representados e designados pelo ministro de Estado da Justiça. Além disso, reiteramos que, em seu artigo 5º, o Decreto também prevê que os trabalhos de secretaria-executiva do Comitê de Avaliação e Acompanhamento do Programa Nacional de Ações Afirmativas serão prestados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. Assim, sugerimos que o demandante contate esses órgãos, a fim de saber se eles possuem a referida informação.

Verifica-se em análise inicial que os órgãos ministeriais não efetivaram a Política de Ação Afirmativa prevista nas portarias; todavia, com o advento do Decreto Presidencial, caberia à Secretaria de Direitos Humanos fazer o acompanhamento e avaliação, que de igual sorte não ocorreu.

A Lei nº 12.990/14 estabelece a competência do órgão de igualdade étnica para realizar o acompanhamento, avaliação e a divulgação dos dados sobre política de reservas de vagas do ingresso no sistema dos cargos públicos.

Inicialmente, identificamos na página eletrônica do órgão de igualdade racial um informativo[9] alegando que foi preenchido desde o advento da Lei um total de 638 vagas no período compreendido entre setembro de 2014 e abril de 2015.

Porém, como a lei cita que a avaliação será anual e pela eficácia social, de igual sorte solicitamos ao órgão de igualdade racial informação sobre a existência ou não desse relatório de avaliação da lei, oportunidade em que foi informado que “ainda não foi possível fazer uma análise dos dados levantados”.

Diante dessas informações sobre os dados das Portarias Ministeriais, do Decreto Presidencial e da lei de reservas de vagas, sistematizamos algumas informações, com o fito de compreender o processo de ação afirmativa, até o exercício de 2015.

Dados localizados

Algumas questões se apresentaram na medida do levantamento dos dados; no tocante à Lei nº 12.990/14, de imediato verifica-se que não existe metodologia específica, além da confirmação da ausência de relatório de avaliação ou possível critério de análise.

Todavia, foi necessário conhecer como operam os programas de ação afirmativa no Serviço Público Federal até então existentes por força das Portarias Ministeriais e do Decreto Presidencial objeto do presente trabalho.

Alguns questionamentos foram observados, resultando na seguinte dúvida levantada na fase inicial de busca de dados: o Programa de Ações Afirmativas possui metodologia? O Comitê de Avaliação fez alguma proposta? A experiência dos Comitês serviu de base para Lei nº 12.990?

Buscando compreender o sentido e o cumprimento da Lei, necessariamente haver-se-ia de conhecer seus antecedentes de aplicação, no caso concreto a Portaria do Ministério da Justiça e Ministério da Cultura.

No caso, o órgão de controle e avaliação confirmou a hipótese da não existência de relatório de avaliação em relação aos ministérios; portanto, não haveria como realizar uma comparação sobre o método de avaliação realizado com o atual modelo, caso existente.

Nas ações afirmativas na Educação, quando da institucionalização em programas das instituições de ensino, observam-se critérios diferenciados; com o advento de Lei Federal, buscou-se disciplinar no âmbito das instituições federais de ensino (básica e superior), por sue vez pendente de avaliação (Costa Neto, 2015).

Em relação ao Decreto Presidencial nº 4.228/02, após pesquisas sobre o cumprimento da norma presidencial, em especial sobre a sua aplicabilidade, verificamos a existência de ações judiciais questionando sua implementação perante o Executivo federal em ação judicial junto ao Supremo Tribunal Federal[10].

Foi realizada consulta ao Ministério das Relações Exteriores (MRE), Ministério do Trabalho (MT), Ministério da Fazenda (MF), Banco Central do Brasil (BCB), Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM-PR), Secretaria de Direitos Humanos (SDH-PR) e a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR-PR). A indagação foi no sentido de conhecer nesses órgãos a aplicação do Decreto nº 4.228/02 e da Lei nº 12.288/10, incluindo aqueles sob sua subordinação em relação a afrodescendentes, mulheres e pessoas com deficiência, as metas, cargos em comissão, percentual nas licitações, e a metodologia adotada.

O MRE manifestou que o programa “deverá prever, quando criado, critérios de pontuação nas licitações que beneficiem afrodescendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência”, e no momento da consulta o órgão estaria em fase de discussão. No MF, a resposta no tocante aos cargos em comissão (DAS) foi no sentido de que “não prevê percentual para pessoas afrodescendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiências”, a inexistência de qualquer relatório de acompanhamento, alegando inclusive que nos casos das licitações o tratamento diferenciado se opera tão somente em relação microempresas e empresas de pequeno porte.

O BC alega não possuir cargos em comissão (DAS), mas funções comissionadas, e assevera que, no cumprimento do Decreto nº 4.228, compete ao “Comitê de Avaliação e Acompanhamento do Programa Nacional de Ações Afirmativas propor as medidas”.

A SDH alega que vem cumprindo “na medida do possível os termos e as metas estabelecidas pelo Decreto”, e em grau de recurso, confirmou que não possui quadro próprio, não há regulamentação para sua ocupação, divergindo da informação inicial.

A SPM-PR “está em processo de elaboração o levantamento do quadro de servidores”; sobre a aplicabilidade do Decreto nº 4228, não há previsão de pontuação sobre os critérios especificados, porém ressalta que a “composição dos quadros da força de trabalho da Secretaria é composta predominantemente por mulheres em todas as suas diversidades”.

O MT, de forma igual aos demais órgãos federais consultados, asseverou que não há previsão de cumprimento da norma do Decreto Presidencial, nenhum sistema de avaliação, metas ou possível cumprimento da legislação.

No tocante à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), foi-nos remetida a mesma informação prestada pela Secretaria de Direitos Humanos, ou seja, o órgão de combate ao racismo do mesmo modo não tinha sistema de metas ou avaliação.

O dado mais importante foi observado perante o MPOG em relação à forma como se daria a aplicação do Decreto Presidencial, sendo consignada a seguinte resposta:

Em atenção à sua solicitação, esclarecemos que os assuntos tratados pelo Decreto nº 4.228/02, referidos em seu pedido de informação, encontram-se em análise por este MP em atuação conjunta com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR).

Com efeito, tratava-se do processo administrativo em curso desde 2012, proposto pela Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR-PR), acrescida de nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que tinha por objetivo subsidiar a constitucionalidade do sistema de cotas raciais no serviço público, cujo arquivamento se operou em razão do Projeto de Lei nº 6.738/13, transformado na Lei nº 12.990/14.

No tocante ao monitoramento pelo órgão de igualdade racial das políticas de cotas no serviço público, o mesmo asseverou que inexiste relatório de avaliação, nem mesmo informou qualquer dado consolidado; as informações, quando realizado, seriam objeto de divulgação na página eletrônica.

Da análise do caso

Iniciamos nossa pesquisa na busca do relatório de acompanhamento e avaliação anual pelo critério de eficácia social estabelecido pela legislação no sistema de ingresso de concursos públicos da área federal; para conhecer a metodologia empregada e entender os conceitos aplicados nas análises do programa.

Partir da existência de um Programa de Ações Afirmativas em período anterior à edição da norma, de modo a observar as convergências e divergências encontradas, consequentemente levar-nos-ia a identificar os aspectos considerados pelos órgãos de avaliação, bem como verificar os critérios, técnicas e categorias utilizadas, além das possíveis variáveis aplicadas.

O Programa de Ações Afirmativas estabelecido no Serviço Público Federal em sua primeira fase estaria integrado à Política de Direitos Humanos; ali foram localizados dois órgãos ministeriais que afirmavam possuir normas técnicas específicas.

Consultados, os órgãos de avaliação, combate e controle não possuíam dados efetivos pelos critérios utilizados e se foram cumpridos, qual o formato específico utilizado por cada uma das pastas ministeriais que se propôs a efetivá-la.

Por certo, a norma aplicada nos ministérios não atingiu o objetivo em razão de não haver o controle governamental, e pelo simples fato de que as políticas étnico-raciais não despertaram o interesse de outros atores sociais, ou talvez pelo próprio desinteresse do gestor público, além de ausência de controle social.

Por sua vez, quando se busca entender o processo referente ao Decreto nº 4.228/02, como bem salienta o órgão de Direitos Humanos quando “não dispõe, em seus registros administrativos, de relatórios do Comitê de Avaliação e Acompanhamento do Programa Nacional de Ações Afirmativas, previsto no Decreto nº 4.228/02”, a hipótese do simples não cumprimento é patente.

Seria demasiadamente conclusivo para o pesquisador asseverar que não há informações, fato ratificado pelo órgão de acompanhamento; portanto, encerraria a pesquisa, pois o lapso temporal do Programa de Ações Afirmativas no serviço público com recorte étnico-racial, no período compreendido entre 1996 e 2014, era inexistente.

Nesse passo, com o fim de justificar uma medida de ação afirmativa, a Secretaria de Direitos Humanos assinala que as leis aprovadas de 1995 a 2009 no campo eleitoral beneficiariam mulheres; todavia, não afirmava que a mesma tenha tido algum recorte do ponto de vista de garantir a parcela das mulheres negras nas avaliações realizadas nesses períodos.

Esse fato pode ser observado quando a obrigatoriedade somente passou a existir nas eleições de 2014, quando resolução do Tribunal Superior Eleitoral[11] determinou que do Requerimento de Registro de Candidatura (RRC) dos candidatos constasse, dentre os dados pessoais, o item “cor ou raça”, cujo resultado foi a constatação de que a “presença de mulheres negras na Câmara dos Deputados não ultrapassa os 10%” (Brasil, TSE, 2014, p. 3).

Ocorre que, quando da avaliação do Decreto presidencial, o MPOG trouxe à baila a discussão sobre os critérios que levariam a compreender a proposta do Programa de Ações Afirmativas, porém, o resultado foi o Projeto de Lei que instituiu a reserva de vagas para negros nos concursos públicos, objeto inicial de nossa análise.

O fato de conhecer os antecedentes da lei serviriam de instrumento para localizar possíveis similitudes, critérios técnicos de avaliação, diferenças, e mesmo os erros e acertos propostos, porém se faz necessário compreender os objetivos do mencionado relatório administrativo junto ao MPOG antes de iniciar a observação da Lei nº 12.990.

Como assinalado, o procedimento administrativo serviu de instrução à propositura da lei de cotas; está datado de 1 de novembro de 2012, foi encaminhado por profissionais de reconhecido perfil acadêmico para as relações étnico-raciais da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR-PR) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

A proposta feita pela SEPPIR destaca que “cabe aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário adotar ações para promover a igualdade racial”; em suas conclusões propõe, através de “autorização legislativa, para via decreto, regulamentar a política de cotas raciais em concursos públicos” (Brasil, MPOG, 2012, p. 18), o que já denota a proposta inicial de um decreto e não uma lei, patente que o objetivo é uma política dirigida tão somente ao Poder Executivo Federal.

De pronto, já se pode observar que o modelo adotado pelo Executivo Federal foi o do envio de um projeto de lei com aplicação tão somente à Administração Pública Federal, ou seja, sem a inclusão dos Poderes Judiciário e Legislativo, o que comprova a ausência de diálogo com os demais poderes da União.

Por sua vez, a nota técnica do IPEA apresenta a desigualdade de participação dos negros em “carreiras e posições de melhor remuneração”, com minorias em cargos de escolaridade de nível superior e pós-graduação, e de participação restrita nesses cargos públicos. E apresenta uma crítica ao modelo de “cotas sociais”, que se constitui em política “sem impacto real na desproporcional participação de negros” (Brasil, MPOG, 2012, p. 20), o que nos leva a proceder como uma análise sobre a necessidade de visão ampliada sobre a política de ação afirmativa no mercado laboral, de plano que não poderia ser limitada.

O IPEA salienta a diferença salarial entre homens e mulheres negras, com vantagem para homens em desfavor das mulheres, e nesse aspecto podemos observar que o Projeto de Lei nº 6.783 e a Lei nº 12.990 não observam o princípio da proporcionalidade de gênero prevista no Estatuto da Igualdade Racial.

Vale acentuar que, perante o Supremo Tribunal Federal, quando se discutiu que a Lei nº 12.990/14 não respeitava o princípio da proporcionalidade de gênero, aquela corte se manifestou com esteio em pronunciado do órgão de assessoria da Presidência da República:

não foi colocada em discussão, pois os principais indicadores sociais utilizados nas Políticas de Promoção da Igualdade Racial demonstram que as mulheres negras são o segmento social que mais tem se beneficiado das oportunidades recentes de inclusão social (Brasil, STF, 2014, p. 3).

Uma vez que o relatório que instruiu a proposta do projeto de lei, de cunho administrativo e sem divulgação, difere da posição adotada pelo órgão de igualdade racial quando questionado judicialmente, o IPEA destaca que os homens negros “estão em maior vantagem sobre as mulheres” (Brasil, MPOG, 2012, p. 4), percebemos que os órgãos de avaliação não dialogam sobre os dados e se verifica que no Supremo Tribunal Federal as informações sobre mulheres são prestadas pelo órgão de igualdade racial, sem a participação da Secretaria das Mulheres, enquanto o IPEA utiliza-se do PNAD/IBGE.

Vale salientar a Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE (2015), nos quais ressalta o avanço das mulheres na questão renda, porém acrescentou que aumentou a desigualdade entre homens e mulheres, e no tocante à população negra “atinge de forma mais desfavorável as pessoas que se identificam como de cor ou raça preta ou parda” (Brasil, IBGE, 2015, p. 89).

Do mesmo modo, salienta o IBGE, além do último decêndio não se “altera substancialmente a estrutura de distribuição de rendimentos sob a ótica da cor ou raça da população” (idem, p. 90) em relação aos mais ricos e pobres no decênio de 2004 a 2015; todavia, há um o aumento da população negra entre os mais pobres.

Esse fato, quando da leitura do relatório do IPEA (Brasil, MPOG, 2012), alegava que o rendimento médio do “homem negro é 71% daquele auferido por homens brancos” e se destaca que a mulher negra, com o mesmo nível educacional, percebe apenas 43% da renda do homem branco; em síntese, há diferença entre os órgãos de pesquisa do Estado, o que pode revelar até uma discrepância maior; portanto, o recorte gênero se faz necessário e obrigatório com o viés étnico-racial.

Verifica-se que, quando da proposta da lei de cotas no serviço público, o IPEA apontava a baixa participação dos negros dentro de algumas carreiras[12]; o mesmo está ocorrendo em relação aos cargos em comissão (DAS[13]); quanto maior o cargo em comissão, menor a participação dos negros; o mesmo percentual é próximo do localizado pela pesquisa da Escola Nacional de Administração Pública[14] (Brasil, ENAP, 2014), porém com a média de 11% (ENAP) e 15,2% (IPEA), no tocante aos dados fornecidos pelos informantes.

O IPEA reconhece que o Decreto nº 4.228 “nunca foi regulamentado nem revogado” (Brasil, MPOG, 2012, p. 28), confirmando a hipótese diagnosticada por nós, bem como destaca que as ações afirmativas no serviço público não devem ser em curto prazo, e faz uma severa crítica à “prescrição de critério social” na seleção dos concursos, utilizando-se como parâmetro a lei de cotas nos certames vestibulares.

O que bem destaca o IPEA é a necessidade de “estabelecer mecanismos periódicos e institucionalizados de avaliação e monitoramento da eficácia da ação afirmativa” (Brasil, MPOG, 2012), e reconhece a necessidade de estabelecimento de metas nas carreiras, fato previsto pelo não cumprido Decreto 4.228 e pela lei em vigor.

Vale salientar que a inclusão do campo “raça ou cor” de preenchimento obrigatório na administração pública tem como determinação apenas o exercício de 2013, mediante autodeclaração e registro em todos os documentos administrativos, cadastros, formulários e bases de dados pessoais, por determinação do Aviso Conjunto dos Ministérios da Casa Civil, Planejamento, Orçamento e Gestão e Secretaria de Promoção da Igualdade Racial.

Verifica-se que os dados de monitoramento de políticas de favorecimento da população negra tem baixa avaliação, fato já constatado quando da política em favor de populações quilombolas; quando auditado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), o Programa Brasil Quilombola (Brasil, TCU, 2014), e do mesmo modo em relação à política de ação afirmativa nas universidades (Costa Neto, 2015).

Da política de gestão ao multiculturalismo

Nos países da América Latina, em relação às ciências sociais e sua contribuição para análise dos contextos sociopolíticos da região, se faz necessário entender a situação em que se encontra comparando com as demais regiões do mundo, de modo a melhor orientar a compreensão dos fatos que ocorrem na região.

Como se observam os aspectos relativos ao desenvolvimento da região e a constante preocupação das ciências sociais em observar as relações específicas de suas sociedades, os fatos históricos e situações excludentes, em especial as políticas orientadas desses países, cabe esse o papel de análise às ciências sociais (Trindade et al., 2007; Fernández, 2005).

Por outro lado, para melhor entender o processo de aplicação das políticas na América Latina, não há dúvida de que existe uma fórmula de recepção de modelos de cunho norte-americano (Lima; Cortes, 2013; Ribeiro; Escobar, 2012) observável na questão racial e no papel do Estado como propulsor do desenvolvimento, o que reflete nos procedimentos de análises e pesquisas desenvolvidas.

Conforme Ribeiro e Escobar (2012), na discussão para uma instância teórica e política, a existência do multiculturalismo propõe que se reconheça a diversidade, porém, em um jogo de multiplicidade de tempos, de modos de vida e de epistemologias, eis que inseridas em agendas políticas diversas, com a devida análise das particularidades do sistema sociopolítico nacional em que se insere (Krotz, 2012).

Verifica-se que no sistema de política de ações afirmativas, quando se trata do mercado de trabalho no serviço público, sua base de análise está configurada na “eficácia social”, ou seja, na hipótese de que o processo temporário da política possa produzir efeitos na sociedade que promovam a igualdade entre os indivíduos.

Trata-se de uma política que busca uma agenda política que reconheça a diversidade; nesse caso, a questão dos negros e sua inserção no mercado de trabalho público; desde já podemos observar que a mesma não tem como fito ampliar essa possibilidade à iniciativa privada.

Percebe-se uma tendência de transformar a “eficiência” em “eficácia”; com efeito há de se observar que a eficiência tem sua análise pelo ponto de vista econômico, enquanto a eficácia tem por escopo o atingimento dos objetivos desejados pela ação do Estado (Torres, 2012) como a ideia de atingir a efetividade e alcançar o objetivo proposto; portanto, não se busca a garantia do direito real da população negra.

Todavia, o cunho “social” por certo tem relação com a ideia de justiça social, logo, a igualdade de oportunidades entre os indivíduos de determinada política temporal para garantir atingir os mesmos níveis dos demais; nesse caso, a política de reconhecimento com recorte étnico-racial que garanta a inclusão no mercado laboral público nos 10 anos subsequentes à edição da norma.

De plano, verifica-se que a norma não possui uma proposta de cunho emancipador nem por objetivo garantir a exclusão da marginalidade social; notadamente, seu cunho de política é limitado ao tempo e apenas como forma e tentativa de resolução, característica de políticas sem critérios específicos de efetividade, prejudicando a eficácia.

Trata-se de uma política contraditória, pois não é aplicada a todos os segmentos do mercado laboral (público e privado), e no campo público não atinge nem os demais poderes do Estado (Legislativo e Judiciário) e entes da Federação, da mesma forma não considera a variável gênero como obrigatória, quiçá a juventude negra.

Vale demonstrar que qualquer política há de ter seu efetivo monitoramento, como requisito básico para atender aos questionamentos durante sua implementação e avaliação, fato comprovado como inexistente nos modelos de políticas destinadas à população negra, em síntese, pelo simples argumento de não fazê-lo, e na sua ausência não se verifica a responsabilização e baixo índice de controle social.

Reconhecer direitos é uma tarefa árdua (Sousa Júnior, 2011; 2015), fato repetido nas demais demandas da América Latina (Sierra, 2011; 2013), e no que tange à população negra tem sido uma praxe; para tanto, quando do pronunciamento em relação à morte de jovens negros, na Corte de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos[15], demonstrou-se que é uma rotina que não tem o condão de sensibilizar o gestor público.

Nesse contexto, tanto no resto da América Latina como no Brasil, no nível institucional e internacional, com o objetivo de proceder ao reconhecimento das diversidades de seus países, utilizam-se mecanismos de reconhecimento (multiculturalismo), por ser de simples aplicação e não se olvidando buscar resolver os problemas centrais.

O multiculturalismo, como “las estrategias y políticas adoptadas para governar o administrar los problemas de la diversidad y la multiplicidad en los que se ven envueltas las sociedades multiculturales” (Hall, 2010, p. 584), e com suas variações e distinções, entre elas conservadora, liberal, pluralista, comercial, corporativa e crítica-radical, aplica-se como instrumento sem qualquer preocupação na efetividade.

Percebemos que as doutrinas multiculturalistas utilizadas nas ações afirmativas do Brasil não despertam a discussão sobre o antirracismo nas políticas do Estado, consequentemente marcadas pelas as dificuldades explícitas de sua aplicação (Hall, 2010).

O modelo é pensado por uma fórmula estática, essencialista e culturalista (Cunin, 2004), portanto sempre utilizando como concepção idealizada, cujas imperfeições têm sido verificadas, todavia, em que os Estados têm buscado afirmar esse caráter multiétnico e multicultural da nação (Lemos Igreja; Agudelo, 2014).

A ação institucional utiliza um procedimento de reconhecimento multicultural, apenas do ponto de vista focal, ou seja, realiza o direcionamento a determinada parcela do serviço público, revela-se com demasiada fragilidade e sem proporcionar a justiça social.

A proposta de criação da lei, quando divulgada pelo órgão legislativo, define que os negros ocupavam cerca de 30% dos cargos do Poder Executivo Federal; porém o relatório interno que instruiu o procedimento em relação às carreiras de Estado, demonstra disparidades entre cargos de nível superior e médio.

Vale acentuar que as medidas propostas foram apenas em nível de Executivo Federal, não englobando estados, Distrito Federal e municípios, nem Legislativo e Judiciário dos demais entes da Federação; portanto, não há intenção de cunho difuso, podendo ser interpretado como medida com viés político e apenas do ponto de vista publicitário.

Considerando que o Estatuto da Igualdade Racial prevê o respeito ao princípio da proporcionalidade de gênero, demonstrado que na espécie as variáveis para a solução do problema pela “eficácia social” constituem barreira intransponível e o órgão de monitoramento contribui de forma sistemática para essa não consecução.

Denota-se que a política multicultural de reconhecimento utilizada no modelo de ações afirmativas no mercado laboral público, quando analisada com parcimônia, se constitui em programa frágil, que pode correr o risco de comprometer as demais políticas públicas em favor da população negra, pela própria ausência de acompanhamento, fato que a própria instrução, quando da iniciativa da lei, argumenta como necessário o exame periódico da implantação da política, fato que não ocorre.

Se por um lado houve nos últimos anos o reconhecimento das políticas, por outro sua efetividade deve ser alcançada evitando que em futuro próximo tenham de ser comparadas ao pronunciamento perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, quando se reconhece o racismo como causa estrutural no Brasil, mas seu combate por meio de políticas multiculturalistas tem se demonstrado ineficiente.

Considerações finais

O Programa de Ações Afirmativas (cotas) para negros vem se aprimorando nos últimos anos, em relação ao ingresso no serviço público, apesar de previsto desde 1996 até o exercício de 2014. A partir de 2001 foram propostas Políticas de Ação Afirmativa no Serviço Público Federal, porém sem nenhuma aplicação efetiva, demonstrando à saciedade tratar-se apenas de um programa governamental sem efetividade cuja análise comprova ausência de monitoramento.

Com o advento de Decreto Presidencial de 2002, estar-se-ia perante norma de cumprimento obrigatório pelos órgãos da administração pública; sua não implantação ou regulamentação é fato inconteste.

Ate 2014 não se tinha notícia de cumprimento das políticas de ação afirmativa previstas nas Portarias Ministeriais e no Decreto Presidencial; com o advento da Lei nº 12.990, passou a existir um sistema de cotas em concursos públicos, porém apenas em nível de Administração Pública Federal, excluindo os Poderes Legislativo e Judiciário e os demais entes da Federação.

A ausência de controle social, monitoramento e avaliação dos programas tem sido uma constante dos programas destinados à população negra, além de não observar o princípio da igualdade de gênero pela proporcionalidade e variáveis da juventude negra.

Programas multiculturalistas têm sido uma constante nos países da América Latina, como políticas de reconhecimento tão somente em situações focais, com pequeno prazo de temporalidade, sem contudo conseguir atingir a justiça social; portanto, um programa que deve ser acompanhado para evitar a ausência de benefício à população negra.

Como programa governamental frágil, corre o risco de comprometer as demais políticas públicas em favor da população negra pela própria ausência de acompanhamento e do exame periódico da implementação da política de ação afirmativa, fato observável até o exercício de 2015.

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TORRES, Marcelo Douglas de Figueiredo. Fundamentos da Administração Pública Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.

Notas

[1] Conforme Barbosa (2001, p. 40), é o “conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e emprego”.

[2] Manifestação do ministro Joaquim Barbosa asseverando que não pode ser em tempo muito reduzido, pois as iniquidades não são extintas em pequenos prazos (ADPF 186).

[3] O conceito de eficácia social é definido pela Lei nº 12.990/14 para aferição das medidas de ação afirmativa quando de sua alusão ao Art. 59 da Lei nº 12.288/10, que nessa parte estabelece a “eficácia social”.

[4] À época do Decreto Presidencial, era de competência da Secretaria de Direitos Humanos, vinculada ao Ministério da Justiça (2002), posteriormente transformada em ministério, e, desde o exercício de 2015, integra o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos na condição de Secretaria.

[5] De acordo com o Decreto-Lei nº 200/67, ainda em vigor, assim estão definidas as atribuições do Assessoramento Superior da Administração Civil:

Art. 122. O Assessoramento Superior da Administração Civil compreenderá determinadas funções de assessoramento aos ministros de Estado, definidas por decreto e fixadas em número limitado para cada ministério civil, observadas as respectivas peculiaridades de organização e funcionamento.

§ 1º As funções a que se refere este artigo, caracterizadas pelo alto nível de especificidade, complexidade e responsabilidade, serão objeto de rigorosa individualização, e a designação para o seu exercício somente poderá recair em pessoas de comprovada idoneidade, cujas qualificações, capacidade e experiência específicas sejam examinadas, aferidas e certificadas por órgão próprio, na forma definida em regulamento.

[6] No Mandado de Segurança nº 33.072 junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), foi arguído o direito de ações afirmativas seguindo o critério de proporcionalidade de gênero, cuja decisão foi pela rejeição do pedido.

[7] O Supremo Tribunal Federal adotou a reserva de vagas para concursos; o Tribunal Superior do Trabalho, aos cargos do órgão e ao Conselho Superior do Tribunal Superior do Trabalho; o Conselho Nacional de Justiça ampliou aos concursos destinados à magistratura e a serventuários.

[8] http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/05/senado-tera-cota-de-20-para-negros-em-concursos-publicos-diz-renanºhtml.

[9] http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/11/sucesso-no-ensino-superior-cotas-agora-buscam-mudar-servico-publico-federal.

[10] Encontramos diversas ações propostas pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA) propondo “ação civil pública por ato de Improbidade Administrativa cumulada com obrigação de fazer”, em desfavor de 21 ministros de Estado por omissão do efetivo cumprimento do Decreto nº 4228, negado seguimento sob o fundamento de ausência de competência do Supremo Tribunal Federal; algumas dessas ações foram por maioria de votos (Radosmyle, 2011, 2013).

[11] Não acessamos os documentos que instruíram a referida resolução junto ao Tribunal Superior Eleitoral, de como se chegou à proposição do quesito; todavia, há registro dessa manifestação quando em 2009 a Comissão Tripartite instituída pela Secretaria das Mulheres, recusada no Congresso Nacional, porém, podemos assinalar como proposta embrionária.

[12] Foram citadas carreiras de Estado e outra que não integra a atividade-fim do Estado: Diplomacia 5,9%; cargos da CVM/SUSEP 6,3%; auditoria da Receita Federal, 12,3%; procurador da Fazenda Nacional, 14,2%; Advocacia da União (AGU), 15,0%; fiscal do Trabalho, 16,6%; Defensoria Pública, 19,5%; e magistério superior e ensino, 19,6%. Importante consignar que o relatório apresenta um único local da administração com percentual superior a 50%: a Suframa (Superintendência da Zona Franca de Manaus).

[13] DAS-6, 13,5%; DAS-5, 12,5%; DAS-4, 19,9%; DAS-3, 25,5%; DAS-2, 27,3%; DAS-1, 28,8%.

[14] DAS-6, 12,0%; DAS-5, 13,0%; DAS-4, 19,0%; DAS-3, 25,%; DAS-2, 27,%; DAS-1, 28,%.

[15] Na petição entregue pelo Brasil, a Corte Interamericana afirma que “o principal resultado alcançado é o reconhecimento, por parte de diferentes sujeitos políticos, do racismo como um dos determinantes da maior vulnerabilidade da juventude negra à violência” (BRASIL, CIDH, 2015, p. 21).

Publicado em 30 de agosto de 2016

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