Desafios na comunicação da criança ouvinte filha de pais surdos
Jamile Keller de Souza Correia
Licenciada em Letras – Libras (UFPB)
Eduardo Beltrão de Lucena Córdula
Doutorando Prodema (UFPB)
A linguagem e a criança
A criança, ao nascer e iniciar seu desenvolvimento ao longo do tempo, irá adquirindo a língua materna pelo convívio familiar, sendo, portanto, a primeira forma de comunicação dela com o meio em que está inserida (Vygostky, 2003),
através da observação e de conversas, ouvidas por acaso, que ocorrem à sua volta. As crianças aprendem assim valores e comportamentos que, por vezes, nem a família nem a sociedade desejariam. O mesmo ocorre com as crianças filhas de pais surdos; também elas são capazes de observar e aprender a partir das interações que presenciam, sobretudo se tiverem familiares surdos e estiverem rodeadas de língua gestual (Almeida, 2007, p. 20).
A linguagem permite ao ser humano expressar seus pensamentos, comunicar-se e manter as relações sociais, ampliando o convívio das inter-relações pessoais além da família, além de permitir acesso à cultura e a educação, que irão ajudar a formar o sujeito no decorrer da vida.
A linguagem é uma forma de inter-relação: mais do que possibilitar uma transmissão de informação de um emissor a um receptor, a linguagem é vista como um lugar de interação humana: através dela o sujeito que fala pratica ação a não ser falando; com ela o falante age sobre o ouvinte, construindo compromisso e vínculo que não existiam antes da fala (Geraldi, 1986, p. 43).
Considerando o que vem sendo feito nos estudos da linguagem humana, percebe-se que, dentro da Linguística, há várias perspectivas para justificar o surgimento da aquisição da linguagem (Geraldi, 1986). Primordialmente, os estudos iniciaram por volta do século VII a.C., no Egito – segundo Heródoto –, quando um rei resolveu fazer um experimento, confinando duas crianças desde o momento que vieram ao mundo até seus dois anos de idade e sem terem nenhum contato com outras pessoas (Campbell; Grieve, 1982).
Portanto, a linguagem é um campo de estudo e investigação desde os primórdios das civilizações, por ser uma característica marcante do ser humano e manifesta em diferentes línguas, nas diversas culturas do globo, algumas como língua nativa e outras artificiais (Chiella, 2007). Assim, “a língua é tida como um sistema de regras abstratas composto por elementos significativos inter-relacionados. Esse sistema é autossuficiente, é um tudo em si, e seus elementos devem ser estuados por suas oposições” (Goldfeld, 1997, p. 17).
Na perspectiva da evolução das línguas, pesquisas foram desenvolvidas e realizadas com o intuito de diferenciar a língua de sinais das línguas faladas, a fim de saber se aquelas são línguas naturais ou adquiridas; de acordo com essa afirmativa, Quadros e Finger (2007, p. 144) afirmam que,
na sua grande maioria, os linguistas têm se preocupado em identificar o que é comum entre as línguas de sinais e as línguas faladas. Parte-se dos referenciais já propostos para as línguas faladas e os universais linguísticos que também foram estabelecidos a partir de estudos com várias línguas faladas e propõem-se análises das línguas de sinais. O investimento nessa linha investigativa justificou-se, uma vez que na década de 1960 havia um movimento intenso no sentido de “provar” que as línguas de sinais eram, de fato, línguas naturais.
No caso das crianças surdas que nascem em famílias ouvintes – “o termo ‘ouvinte’ refere-se a todos aqueles que não compartilham as experiências visuais enquanto surdos” (Skliar; Quadros, 2000, p. 43) –, ocorrem problemas de comunicação entre os familiares e os filhos e, consequentemente, o desenvolvimento da linguagem. Da mesma forma, em situações com menor ocorrência na sociedade, em que ambos os pais são surdos e a criança nasce ouvinte. Neste último caso, as situações ainda estão sendo estudadas no Brasil para que se tenha um entendimento mais amplo de como interferem na formação da linguagem na criança nas fases iniciais da vida (Cruz; Finger, 2013). Em ambas as situações, quando identificadas rapidamente, pode-se ter as devidas intervenções, para que não ocorram prejuízos para o desenvolvimento da criança e para se estabelecer a comunicação entre os membros da família.
A interação entre pais e criança será afetada nos casos de deficiência de linguagem. É claro que a maioria das crianças aprende a linguagem adequadamente com um mínimo de estimulação consciente de quem cuida delas. As evidências sugerem que a conseqüente distorção da interação em casos menos acentuados também pode ocorrer mais em função das necessidades da criança e dadificuldade dos pais ao tentarem corresponder a tais necessidades do que de um estilo particular de fala que os pais possam usar (Hubner; Ardenghi, 2010, p. 31).
A criança CoDA
CoDA é a sigla para “Children of Deaf Adults”, ou seja, criança ouvinte com pais surdos (Sousa, 2012; Streiechen; Krause-Lemke, 2013; Melo, 2015; Vargas et al., 2016). Essa situação é classificada por Cruz e Finger (2013) como uma aquisição bilíngue bimodal, por ter a aquisição de uma língua não oral e uma oral.
Essas crianças são, portanto, “consideradas bilíngues biculturais, pois, além de terem o potencial para compartilhar a cultura e a língua de sinais de seus pais surdos, por serem ouvintes tornam-se inevitavelmente membros da comunidade ouvinte” (Cruz; Finger, 2013, p. 2).
Filhos ouvintes de pais surdos representam uma contradição emergente na cultura (surda): eles dispõem do conhecimento de seus pais - domínio da língua e conduta social -, mas a cultura encontra formas sutis de dar a eles um estatuto incomum e à parte (Palden; Humphries, 1988, p. 3 apud Skliar; Quadros, 2000, p. 44).
Quadros e Finger (2007) afirmam em seus estudos que conceitos importantes relacionados à aquisição da linguagem são necessários para o processo de aprendizado da linguagem, que primeiramente ocorre pela imitação da fala, fase em que o indivíduo necessita de estímulos constantes por parte dos adultos. Analisando estudos de Skinner (2002), Schultz e Schultz (1992) e Quadros (1997) ao observarem o comportamento humano e a evolução para aquisição da linguagem ao invés de analisar somente o que acontece dentro da mente humana, pode ser explicado sem qualquer referência de eventos mentais e psicológicos. Trazendo uma outra proposta de teoria que também tem a finalidade explicar a aquisição da linguagem, Quadros e Finger (2007) afirmam que modelos simbólicos que estimulam a psique e o cognitivo das crianças promovem o desenvolvimento da linguagem.
Pode-se observar que, com base na teoria de Quadros e Finger (2007), a língua é aprendida por meio dos processos de domínio da cognição humana, ou seja, todo tipo de aprendizado é resultado da construção de padrões associativos que podem ser enfraquecidos ou reforçados a partir das regularidades do input Para essa teoria, não há conhecimento inato que estruture as línguas humanas e sim mudanças graduais, pelo conhecimento de mundo adquirido e experiências.
Quadros e Finger (2007) afirmam que teóricos vêm estudando e desenvolvendo pesquisas na área da aquisição da linguagem, mas ainda insuficientes em relação à aquisição da linguagem de pessoas ouvintes que são filhas de pais surdos.
De acordo com Lopes e Leite (2011), quando o surdo utiliza a sua própria língua – Libras –promove o seu desenvolvimento, construindo a partir dela sua própria subjetividade. Por esse aspecto, existe uma concepção de que, entre os surdos, a comunicação ocorre com maior liberdade de expressão. Por isso, é importante que a aquisição da linguagem do surdo aconteça o mais cedo possível, para que se tenha maior desenvolvimento. Se o contato com a Libras for tardio, o surdo levará mais tempo para ter fluência na Libras e, consequentemente, para seu desenvolvimento linguístico. Também é de extrema necessidade que ocorram as interações com outros surdos.
O objetivo deste estudo foi conhecer e analisar uma situação sobre uma criança CoDA para tentar expor a aquisição da primeira e da segunda línguas, internalizando a Libras e o português simultaneamente. Nesse processo de investigação, há uma questão principal que necessita de reposta: qual a importância da família durante a aquisição da linguagem da criança?
Os caminhos metodológicos
Visando alcançar o objetivo estabelecido, a presente pesquisa teve caráter qualitativo, tendo como metodologias o estudo de caso, a história de vida e a pesquisa participante, com utilização das técnicas da entrevista; como instrumento, o formulário semiestruturado (Gil, 2008; Gerhardt; Silveira, 2009); um dos autores deste estudo é surdo e possui filho ouvinte. A entrevista ocorreu em dias alternados nas duas primeiras semanas de agosto de 2016, em Salvador-BA, na residência da mãe da criança CoDA.
Segundo Goldenberg (1999), a pesquisa qualitativa busca o aprofundamento da compreensão de um grupo social, de uma organização entre outros. Os pesquisadores que fazem esse tipo de abordagem defendem uma metodologia própria, buscam explicar o porquê das coisas, pois os dados analisados são de interação.
O estudo de caso é um estudo profundo que permite conhecimento amplo e detalhado; é muito utilizado pelos pesquisadores sociais e permite explorar situações da vida real, descrevendo-as para investigação, e explicar as causar que possibilitem a utilização de levantamentos e experimentos (Gil, 2008).
A história de vida se caracteriza por resgatar fatos e informações da vida pessoal de um ou vários informantes (Severino, 2007).
A pesquisa participante tem como pressuposto o envolvimento direto e a identificação do pesquisador com as pessoas investigadas (Gerhardt; Silveira, 2009). Para o desenvolvimento da técnica da entrevista foi redigido um formulário semiestruturado para preenchimento pelos pesquisadores; durante o processo de investigação, novas perguntas poderiam ser acrescentadas (Gil, 2008).
O nome da criança (que é menor de idade) será omitido; aqui ela é citada como Luz. Assim fica garantida sua não identificação e dos demais participantes, conforme determina a ética para pesquisas com seres humanos, de acordo com a Resolução nº 510/16 do Conselho Nacional de Saúde; todos os envolvidos direta ou indiretamente concordaram em participar do presente estudo (Brasil, 2016).
Uma história de vida – relato familiar
A criança CoDA observada e a história de vida relata se tornaram um estudo de caso, já que na comunidade em que estão inseridas não há outro caso similar. Ela nasceu em 2010, em Salvador-BA; está com seis anos e reside com os avós maternos na cidade de Nazaré das Farinhas. A entrevista semiestruturada com a mãe relevou a vida e as inter-relações da família, relatadas do nascimento até os cinco anos de idade.
A história de vida aqui relatada tem como foco a criança (ouvinte), a mãe (surda) e a avó materna (ouvinte). A mãe tinha 25 anos, é surda congênita; o pai, com 26 anos, era surdo por ter contraído catapora nos primeiros anos de vida, não lembrando especificamente em que idade. A doença causou-lhe a perda auditiva completa. Atualmente, os pais de Luz estão separados. A avó não é fluente em Libras, mas conhece o alfabeto e faz datilologia para se comunicar com a mãe de Luz.
A mãe de Luz tem a Libras como L1 (primeira língua) e o português como L2 (segunda língua), porém mais na parte da escrita, que utiliza para se comunicar com os ouvintes que não dominam Libras.
De 0 a 1 ano de idade: cuidados maternos
Após o nascimento e durante os primeiros meses de vida de Luz, a mãe teve ajuda da avó materna, que verificou que a criança respondia a estímulos sonoros, virando a cabeça na direção do som. Em análise médica, ficou diagnosticado que Luz era realmente ouvinte.
A mãe deu um sinal para representar o nome de sua filha. Esse sinal é uma forma de substituir o nome a partir da característica da pessoa; o surdo dá um sinal para identificar a pessoa, ao invés de repetir a datilologia do nome para dirigir-se a ela (Goldfeld, 1997).
Para os cuidados maternais, a mãe ficava atenta à filha para visualizar o choro e, assim, verificar se era fome, cólica, ou para realizar a higiene de Luz. Porém, nos relatos, a assistência da avó materna foi essencial para adaptação, para interpretar as necessidades da criança e para adquirir o aprendizado necessário como mãe, por Luz ser sua primeira filha, e, assim, ter o cuidado maternal efetivo.
De 1 a 2 anos de idade: início da linguagem
Luz iniciou a formação da sua linguagem como toda criança ouvinte, por imitação das palavras que os adultos repetiam na sua presença, como foi relatado por sua mãe. Quem teve papel fundamental no estabelecimento do português foi a avó materna. Após o primeiro ano de vida, alguns sinais foram sendo ensinados a Luz.
Segundo Skliar e Quadros (2000), a aquisição da linguagem de sinais na situação de CoDA ocorre de forma natural e espontânea, já que a criança ouvinte nasce e convive com surdos toda a sua infância, passando também a ser detentora de ambas as culturas: cultura surda e ouvinte.
Quando ela nasceu, a mãe deu um sinal para ela; antes era usado o dedo indicador puxando um pouco o olho direito para cima, mais uma configuração de mão para representar a letra inicial do seu nome. Segundo a mãe, ao completar três anos de idade, Luz por si só mudou o sinal com a mesma configuração de mão da letra inicial, modificando o espaço da realização do sinal, passando a ser realizado na bochecha. Aos cinco anos, foi perguntado a Luz se ela recordava dessa mudança, ela informou que não lembra como e por que ocorreu.
Partindo do processo de aquisição da linguagem pela criança, pôde-se observar alguns acontecimentos: ela reproduziu os primeiros sinais em Libras e as primeiras palavras em português quando tinha um ano de idade. Mesmo sendo ouvinte, iniciou o processo de fala a partir da sinalização da Língua de Sinais e depois para a língua portuguesa, formando os sinais/palavras respectivamente nas duas línguas: “Mamãe”, “Papai” e “Trabalho”.
De 2 a 3 anos de idade: ingresso na educação formal
Com o aprendizado do português e a pronúncia das palavras por Luz, a mãe passou a ter necessidade de aprender a leitura labial para que pudesse compreender melhor a filha, enquanto ela ainda não dominava Libras.
Quando completou dois anos e seis meses, a mãe fez um vídeo em que ela sinaliza em Libras e Luz fazia a tradução, sem demonstrar dificuldade para entender os seguintes sinais: papai, mamãe, vovó, água, trabalhar, eu te amo [na ASL – American Sign Language (Quadros; 1997)], eu amo você [em LSB – Língua de Sinais Brasileira – Libras (Quadros, 1997)] e tia.
Após algumas mudanças de residência por problemas pessoais na trajetória pessoal e profissional da mãe de Luz, ela passou a residir em Salvador. A avó materna não pôde ficar na capital e voltou à cidade de Nazaré das Farinhas quando Luz estava com três anos de idade. A mãe passou a fazer visitais a Luz apenas nos finais de semana.
Nesse período, Luz passou a ensinar o que sabia em Libras para a avó materna e uma tia que residia com elas: sinais para diversos tipos de frutas e objetos do cotidiano. A mãe acredita que isso funcionou como reforço na memorização de Luz, ajudando-a a não esquecer Libras.
De 3 a 4 anos: estabelecimento definitivo do bilinguismo
Quando Luz completou quatro anos, a mãe lembra que fez outro vídeo dela sinalizando as cores dos “lápis de cor” que tinha na residência, enquanto dessa vez sua filha indicava os sinais para cada cor e oralizava para o significado de cada sinal.
Apesar do afastamento devido à mudança para Salvador entre os 2 e 3 anos de idade de Luz, a mãe percebeu que, ao longo do tempo, que ela não esqueceu a língua de sinais.
Pelo fato de eu e o pai sermos surdos e nossa família ser ouvinte, minha filha sempre conviveu em ambientes que tinham pessoas surdas e ouvintes, tornando-a, assim, uma pessoa bilíngue; desenvolveu como CoDA as duas línguas de forma simultânea, iniciando o processo linguístico das duas línguas no mesmo período (Mãe de Luz).
De 4 a 5 anos: input em Libras
Atualmente, Luz está aprofundando seus conhecimentos em Libras e português, principalmente na escola, e com isso fortalecendo o bilinguismo; inclusive ensinando à avó e à tia os símbolos utilizados em Libras que vem aprendendo.
Nos dias em que a mãe fica em Nazaré das Farinhas-BA, Luz, quando tinha entre cinco e seis anos de idade, pedia-lhe para contar histórias da sua vida, como ela nasceu, e narrativas infantis, ampliando assim o vocabulário de sinais, o que vem contribuindo para o aprendizado da filha.
No ato de brincar, contar histórias, passeios, a mãe afirma que percebe que Luz mostra para ela os sinais que sabe. Ambas possuem ótima relação, na percepção da mãe de Luz. Nesse reforço de aprendizado, está a afilhada da mãe de Luz, que é surda, possui seis anos de idade e tem Libras como L1 (primeira língua). Quando Luz possui alguma dúvida quanto a algum sinal em Libras, ela pergunta, por oralização de forma lenta, a palavra que ela quer sinalizar, e a mãe realiza a leitura labial para responder a ela.
Figura 1: Síntese gráfica do desenvolvimento da linguagem de Luz dos 0 aos 5 anos de idade.
Fonte: Dados da pesquisa/os autores (2016).
O nascimento de Luz numa condição CoDA proporcionou algumas adaptações e mudanças para todos da família. A mãe teve que aprender a interpretar os gestos e expressões da sua filha desde o nascimento para entender as suas necessidades básicas; o aprendizado de Luz da língua portuguesa fez com que sua mãe passasse a dominar a leitura labial para estabelecer uma comunicação mais efetiva com ela; ao mesmo tempo que a avó e tia materna só realizavam datilologia com a mãe de Luz, a neta lhes ensinara outros sinais e passou a ampliar seus vocabulários em Libras. Nesse processo salutar e positivo de inter-relações, a linguagem se estabeleceu para a criança e ao mesmo tempo fortaleceu seu bilinguismo, mostrando o papel fundamental dos familiares e suas relações socioeducativas no desenvolvimento da criança, respondendo ao questionamento inicial deste estudo.
Tecendo alguns diálogos
Quadros (1997) afirma que o indivíduo, quando nasce, passa pelo seu primeiro processo: a faculdade da linguagem. Ele nasce com um dispositivo inato que é acionado a partir do input familiar, com o estímulo dos adultos pela formação da gramática das crianças. Desse modo, com a exposição da língua à criança, passando pelo processo de aquisição, o indivíduo seleciona quais regras utilizará, criando uma série de sequências adaptativas, assimilativas e mnemônicas, até a internalização de sua gramática e estabelecimento completo da linguagem. Com isso, são obtidas competências linguísticas – o conhecimento que o falante tem da gramática da sua língua; o desempenho linguístico é o uso desse conhecimento adquirido.
De acordo com a teoria gerativa, a abordagem linguística (Chomsky, 1957 apud Quadros,1997), tem como premissa básica a aquisição da linguagem como processo de descoberta da regularidade das regras das línguas que todos os falantes conhecem e a determinação da existência de uma gramática universal, que é um dispositivo específico inato para aquisição da linguagem. Reafirmando essas proposições, Quadros e Finger (2007, p. 25) explicam que “a abordagem gerativista, identificada por alguns pesquisadores como inatista, pressupõe a existência de um mecanismo inato responsável pela aquisição da linguagem denominado gramática universal (GU)”.
Essa teoria, a partir do ponto de vista empírico, investiga a qualidade da experiência da criança e o input dado a ela. É possível afirmar também que as crianças são sensíveis ao input, mudando seu comportamento pela intensidade e pelos tipos de estímulos a que são expostas (Hubner; Ardenghi, 2010).
A pesquisa sobre casos de CoDAs no Brasil ainda é incipiente. Em buscas na base de dados do Google Acadêmico e utilizando como chave de pesquisa a sigla “CoDA” e sua tradução, “criança ouvinte filha de pais surdos”, ente os anos 2000 e 2016, identificou-se um total de 1.600 bibliografias. Foram analisadas as dez primeiras páginas dessa lista, totalizando 100 bibliografias, que tratavam da cultura surda, de estudos clínicos, educacionais, familiares e sociais.
Analisando o resumo ou o conteúdo temático delas, foram encontrados sete trabalhos que tratam da temática: uma dissertação de mestrado, cinco artigos publicados em periódicos diversos e um texto publicado em anais de evento (Skliar; Quadros, 2000; Melo, 2012; Neves, 2012; Sousa; Quadros, 2012; Streiechen; Krause-Lemke, 2013; Quadros et al., 2014; Vargas et al., 2016). Essas bibliografias mostram que as pesquisas são ainda recentes (Quadro 1).
Quadro 1: Análise das bibliografias pesquisadas.
Autores |
Categoria |
Objeto do estudo |
Principal resultado |
Skliar e Quadros (2000, p. 32) | Periódico científico | “Apresentar uma reflexão invertendo epistemologicamente o problema da inclusão.” | “Faz-se, então, uma discussão sobre o discurso e a prática cultural em torno dos outros, da alteridade, adquirindo novas dimensões epistemológicas, políticas e pedagógicas.” |
Melo (2012, p. 85) | Periódico científico | “O estudo apresenta uma investigação acerca dos Children of Deaf Adults (CoDAs) em Sergipe.” | “Verificou-se que os CoDAs possuem papel relevante para a inclusão do surdo, uma vez que conhecem as duas culturas, e diante dessa realidade seu papel também se confunde com a do tradutor intérprete, o que deve ser repensado e discutido com mais profundidade, considerando as especificidades do profissional.” |
Neves (2012, p. 9) | Dissertação | “Entender a relação das crianças com a língua de sinais (LSB – Língua de Sinais Brasileira) e a língua falada (PB – Português Brasileiro).” | “A análise mostra que as narrativas apresentam características típicas de cada modalidade, oral/auditiva ou gesto/visual e os elementos estruturais de Labov e Waletsky. Apesar de as histórias elaboradas pertencerem a diferentes línguas, a pesquisa mostrou que as crianças estão desenvolvendo a competência narrativa nas duas línguas – PB e Libras – sem que uma língua se sobressaia à outra.” |
Sousa e Quadros (2012, p. 329) | Periódico científico | “Identificar e analisar o uso dessa alternância na fala de uma criança e de um adulto (ambos ouvintes, filhos de pais surdos), interagindo em uma situação de bilinguismo intermodal, com interlocutores surdos e ouvintes.” | “as características da alternância de línguas pelo adulto e pela criança parecem ter semelhanças e diferenças. O sujeito adulto parece ter feito um uso da alternância mais preocupado com o curso da interação. A criança, por sua vez, não parece tê-la usado com propósitos pragmáticos específicos. Quanto à extensão das alternâncias, pode-se perceber que tanto a criança quanto o adulto utilizaram enunciados maiores do que uma única palavra isolada.” |
Streiechen e Krause-Lemke (2013, p. 2 e 17) | Anais de evento | “Identificar as estratégias linguísticas na comunicação de pais e filhos.” | “A surdez da mãe não causa nenhum tipo de prejuízo ao desenvolvimento linguístico, cógnito e social dos filhos.” |
Quadros et al. (2014, p. 799) | Periódico científico | “Analisa produções espontâneas de crianças bilíngues bimodais, interagindo com seus interlocutores surdos ou ouvintes (duas crianças norte-americanas e duas brasileiras).” | “Todas as quatro crianças produziram enunciados bimodais, tanto nas sessões em que a língua alvo era a fala ou os sinais, mas de forma muito mais frequente nas sessões em sinais, potencialmente porque as crianças acham mais difícil suprimir a língua dominante. Esses resultados indicam que essas crianças bilíngues bimodais são sensíveis às línguas e seus interlocutores, enquanto apresentam uma influência considerável da língua dominante da sua comunidade.” |
Vargas et al. (2016, p. 835) | Periódico científico | “Verificar o surgimento e a estabilização da percepção dos contrastes mínimos da Língua Brasileira de Sinais.” | “O parâmetro movimento é percebido mais facilmente do que os demais contrastes, seguido dos parâmetros locação e configuração de mão, que atuam de maneira semelhante na percepção dos aprendizes desta língua. O contraste mais difícil de ser percebido refere-se à orientação. Quanto mais tempo de contato com a língua, melhor o desempenho das CoDAs na percepção dos contrastes mínimos.” |
Fonte: Dados da Pesquisa, 2016.
As bibliografias encontradas sobre o universo de CoDA mostram uma tendência para estudos sobre inclusão, narrativas, processos de aprendizagem do bilinguismo ou bimodal, desenvolvimento cognitivo e linguístico, identidade e cultura surda.
Conclusões
As teorias vistas aqui foram postas para discutir os dados relatados e explicar o que ocorre nesse processo de formação da linguagem. E, com esta pesquisa, pôde-se perceber que o processo de aquisição da linguagem é algo que se adquire ao longo do tempo e do desenvolvimento da criança, pelo convívio social e inputs que ela recebe – tanto pelo contato com a própria língua como pelo contato com o ambiente familiar – ambos pelo estímulo/resposta dos adultos que convivem com a criança e a da sua prática com a utilização da(s) língua(s) diariamente.
O papel da família e da comunidade mostra-se fundamental para o estabelecimento da linguagem nas crianças e, principalmente, nos estudos com crianças CoDAs, para que se estabeleça a aquisição tanto do português, quanto da Libras, no seu pleno desenvolvimento psicocognitivo e social.
O desenvolvimento da linguagem na criança ainda é um campo de muitos estudos, principalmente em situações em que haja um membro familiar surdo interagindo com elas ou ela ter essa condição. As situações em que ocorra a CoDA devem ser amplamente estudadas, já que ainda há poucas publicações esse respeito no Brasil. Sendo assim, é preciso conhecer as recorrências da criança CoDA e entender o processo de aquisição da linguagem a partir do seu ponto de vista e se em todos os caso o bilinguismo se estabelece.
Os estudos, apesar de serem ainda incipientes, pedem maiores aprofundamentos no Brasil sobre a CoDA; há ainda que se investigar todo o processo de aprendizado e cognição do bilinguismo pela criança ouvinte filha de pais surdos; seus resultados irão inferir diretamente na pedagogia e na didática das escolas que atuam com a inclusão de crianças surdas ou bilíngues (ensinando português e Libras), além dos cursos de formação de intérpretes e licenciados em Libras.
Referências
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Publicado em 07 de fevereiro de 2017
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