O ensino dialógico da Língua Portuguesa nos primeiros anos do Ensino Fundamental
Charles Silva de Oliveira
Professor dos anos iniciais do Ensino Fundamental, licenciando em Pedagogia (UERJ)
A discussão que permeia os espaços escolares hoje, de certo modo, diz muito respeito, ainda que indiretamente, à função social que ela assume e objetivos que pretende alcançar para lograr êxito em sua comunidade. Essa discussão, porém, não é recente e envolve muitos estudiosos que se debruçam, ponderam e elucidam suas concepções em favor de um protótipo educacional.
Embora seja notório o esforço de pesquisadores em Educação sugerindo e propondo uma pedagogia direcionada sobretudo ao diálogo e ações que ratificam a caracterização de um espaço que possibilite engendrar uma educação que prepare homens e mulheres para o pleno exercício de sua cidadania, para a autonomia e a reflexão crítica e criativa, é visível que muitas escolas permanecem assoladas num sistema obsoleto que cumpre uma função simplista e de reprodução social. Professores e professoras ainda encontram dificuldades em assumir uma postura que coadune com a proposta progressista de fazer educação e limitam-se a formar, não preparar seu alunado.
A dicotomia proposta nestas palavras – formar e preparar – em Educação dizem respeito à compreensão da função social da escola. A educação mais tradicional, segundo Libâneo (1986), se interessa pela forma, na perspectiva de tornar os alunos produtos incapazes de criar, refletir e criticar. Estão modelados, engessados e aptos para as demandas que não fujam ao padrão. Preparar significa, no entanto, fazer do aluno um cidadão competente conhecedor de sua realidade, direitos e deveres e capaz de se entender como protagonista de sua própria história, isto é, preparado para transformá-la.
Autores como Freire (1997), Moreira e Candau (2008) e Libâneo (2006) interpelam e trazem à tona discussões que orientam a modificação dos currículos escolares em detrimento da proposta tradicional de ensino, que se revela insatisfatória e não é capaz de promover a aprendizagem levando em consideração as proposições desenvolvidas na contemporaneidade. Isso faz com que a escola se torne desinteressante e desestimulante, o que, consequentemente, produzirá efeitos como a evasão escolar.
Os componentes curriculares expostos de maneira tradicional fazem com que a escola se torne um espaço enfadonho e desestimulante para as crianças, pois não se preocupa em criar o vínculo entre a escola, seus conteúdos curriculares e a prática do cotidiano.
Em se tratando do ensino da Língua Materna nas escolas de anos iniciais do Ensino Fundamental, por exemplo, o currículo e as propostas didático-pedagógicas promovidos em sala de aula fazem da nossa língua materna um compilado de regras que a padronizam e engessam a língua falada, tornando-a irreconhecível pelos próprios alunos que a aprendem – falantes nativos de Língua Portuguesa. É urgente a implementação de mudanças as quais atendam, sobretudo, às necessidades da comunidade que está no entorno da escola, como sugere Bakhtin (2013) quando trata do ensino apresentado de forma dialógica e conectado sobretudo às práticas cotidianas e contextualizando o ensino a ponto de o aluno se reconhecer como falante nativo e usuário competente da Língua Portuguesa, sua língua materna.
O ensino de Língua Portuguesa firmado na lógica gramatical em que os alunos necessariamente devem decorar normas que estão distantes do seu dia a dia – isso em se tratando de escolas localizadas em regiões periféricas, onde o poderio econômico da população é irrisório – faz com que os alunos não se reconheçam, o que é minimamente intrigante, haja vista que se trata da língua materna deles próprios.
A perspectiva do diálogo na proposta de ensino de Língua Portuguesa preparará o aluno principalmente para entender e interferir na dinâmica do discurso, levando em consideração todos os elementos nele envolvidos e, assim, terá condições suficientes para compreender outros processos que ocorrem no interior da sociedade de forma mais elucidada e autônoma, porque a proposta dialógica levará em consideração inclusive a intenção de quem profere o discurso.
Esta pesquisa tem como tema o ensino dialógico da Língua Portuguesa nas séries iniciais do Ensino Fundamental e sua contribuição para a preparação de cidadãos conscientes e se incumbirá de esclarecer a importância do ensino em diálogo levando em consideração fatores que influenciam direta ou indiretamente o fazer pedagógico no interior das salas de aula, em contrapartida ao ensino empobrecido e medievalista que sustenta a ideia de reprodução do status quo de uma sociedade. Em linhas gerais, o objetivo principal diz respeito à compreensão da função social da escola manifestada a partir dos componentes curriculares sobre seu alunado de modo a desenvolver a consciência crítica e a formação de sujeitos competentes frente ao uso e adequação das manifestações da língua. Para isso, me incumbi de apreciar de perto os fazeres pedagógicos de uma escola localizada no município de Queimados, no Estado do Rio de Janeiro.
Escola, preparação e transformação
O teor político-social de uma instituição de ensino é deveras incontestável da prática pedagógica. A educação é um ato político, pois, de acordo com Freire (apud Ecco e Nogaro, 2015, p. 3.528), “não há prática educativa que não se direcione para um certo objetivo, que não envolva um certo sonho, uma certa utopia” (Freire, 1994, p. 163). Nesse sentido, os processos que envolvem o ato deliberativo e a tomada de decisão que encaminharão a práxis pedagógica para um lado ou outro caracterizam-se, portanto, como ato político.
Levando, pois, em consideração todo esse processo que permeia a prática pedagógica, é essencial que tenhamos, como profissionais da Educação, consciência da função que a escola exerce frente à sua comunidade.
Émile Durkheim (2009) sugere que a escola deve ser um espaço que forme os cidadãos para desempenhar seus papéis na sociedade – educação funcionalista. Nessa perspectiva, a escola presta o papel de reprodutora, fazendo com que a sociedade seja mantida conforme planejada. Essa lógica, porém, imprime a ideia de que a educação se apresentará para cada indivíduo a partir de sua classe social e econômica.
Por outro lado, Freire (1997), a partir da lógica de Marx e Engels (1992), sustenta um posicionamento antagônico à lógica reprodutiva e funcionalista. Para o autor, a escola deve ser um espaço em que o ensino deve construir, com base no contexto social da instituição, saberes que possibilitem a autonomia, a criticidade, a reflexão e a criatividade para que os sujeitos sejam capazes de se entender como protagonistas de sua própria história e, portanto, capazes de interferir diretamente em suas realidades sem que necessitem sustentar um sistema de maneira alienada.
Freire (1989) ainda pondera acerca da relação professor-aluno e imprime a ideia da horizontalidade, em que sugere que ensinando a gente aprende e aprendendo a gente ensina.
Em Paulo Freire, a abordagem da educação não é unilateral. Não há uma relação linear de poder, mas um processo dialético em que educador e educando estão imersos numa aventura de descoberta compartilhada. Por isso é [a educação] uma concepção revolucionária, comprometida com a libertação humana (Gayato, 1989, p. 12).
A escola, portanto, deve assumir um compromisso com seu alunado de modo que ofereça a ele condições para que possa sobrepor o sistema; ir além do que a sociedade impõe e transformar o mundo à sua volta. Contudo, para que isso seja possível, é estritamente necessário que a escola sirva como potencializadora, não opressora. A escola deve, portanto, ser um espaço de preparação, um espaço que promova a transformação e o sucesso de seus alunos.
Língua Portuguesa e ensino tradicional
O fazer educação a partir das ideias tradicionais é inerente à história das primeiras escolas e à lógica liberal associada ao Século das Luzes, ou iluminismo (Aranha, 1996). O fundamento do pensamento liberal diz respeito à manutenção da estrutura social, formando seus indivíduos para exercer seus papéis levando em consideração as aptidões sociais. A metodologia desconsidera, portanto, qualquer resquício de subjetividade do processo de ensino. Aqui, por exemplo, não é levado em conta o contexto social em que a criança está inserida.
Segundo Libâneo (1986), o termo liberal alude à sociedade de classe e diz respeito, assim, à ideia funcionalista e reprodutivista do que é proposto por ela. Sendo assim, a escola é o espaço onde serão formados sujeitos para participar da sociedade alocados cada um no espaço determinado por outrem e com raríssimas chances de mobilidade. Isto é, o filho do carpinteiro não terá um futuro diferente longe de uma carpintaria. O filho de um nobre teria a chance de manter o status de nobreza baseado em alguma profissão respeitada e vislumbrada socialmente.
A Língua Portuguesa, seguindo os padrões impostos por essa forma de pensar e fazer educação, é padronizada e ensinada a partir da norma culta estabelecida pelos estudiosos.
Hoje ainda colhemos a herança da escola tradicional e não superamos esse ideal em virtude de inúmeros fatores, desde a formação docente até a desvalorização desse profissional em virtude do baixo investimento em educação feito pelo Brasil nos últimos anos, de acordo com matéria divulgada pelo Estadão em 26 de setembro de 2021.
Tais fatores são responsáveis e contribuem para a mecanização do ensino, tornando-o pouco atrativo principalmente para o público-alvo dos anos iniciais do Ensino Fundamental. A didática debruçada sobretudo na memorização e exercícios que fogem à realidade do educando não é significativa e gera nos alunos insegurança frente ao idioma que é dele.
Além disto, a mecanização do ensino da Língua Portuguesa não compreende que a língua é um fenômeno social, vivo, em constante modificação, como salienta Hricsina (2016):
Todas as línguas vivas mudam. Praticamente não existe nenhuma língua que não esteja em fase duma certa transformação ou de movimento. Em cada língua viva, há sempre vários fenómenos que estão em processo de evolução.
Sendo assim, por não incorporar a si e omitir as tantas variações linguísticas, automaticamente a escola exclui e marginaliza sujeitos e suas histórias, haja vista que o processo de apropriação da língua está estreitamente ligado à sua identidade. Esse, portanto, é um fator que justifica discursos como:“eu não sei nem português, porque devo aprender outro idioma?”, frequentemente proferidos por falantes nativos da língua portuguesa que não se encontram no interior da sala de aula em virtude do distanciamento entre a língua falada e a norma culta padrão.
Dialogismo no ensino de Língua Portuguesa
Entende-se por ensino dialógico aquele que dá condições e promove o aprendizado pondo o aluno em constante diálogo com os elementos que envolvem o ensino. O ensino dialógico da Língua Portuguesa significa, para Bakhtin (apud Flores; Teixeira, 2009, p. 149), que
as relações dialógicas são irredutíveis às relações lógicas ou às concreto-semânticas, que por si mesmas carecem de momento dialógico. Devem personificar-se na linguagem, tornar-se enunciados, converter-se em posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles possam surgir relações dialógicas.
Nesse sentido, é possível compreender que Bakhtin, ao promover o dialogismo, compreende os enunciados a partir não somente do texto, mórbido e frio. Para ele, é necessário compreender fatores diversos como, por exemplo, quem proferiu o enunciado? A quem ele foi proferido?
Aproximar o ensino da Língua Portuguesa a investigações por detrás do que está escrito permitirá que o aluno compreenda toda uma dinâmica discursiva e seja capaz de utilizá-la a seu favor, pois, “por trás de todo texto encontra-se um sistema compreensível para todos, a língua, que se mantém como potencialidade a ser concretizada no interior de uma enunciação” (Flores; Teixeira, 2009, p. 150).
A possibilidade do diálogo em sala de aula faz do aluno um usuário competente da língua na medida em que ele tem a possibilidade de experienciar diferentes situações em diferentes contextos, associando de maneira significativa a língua aos processos e estruturas sociais que o cercam.
Nessa lógica de ensino, é prudente e viável valorizar e compreender as diferentes formas de manifestação da língua compreendendo o processo em que cada uma se dá: pela idade, sexo, classe social, tempo histórico, poderio econômico e nível de instrução, as diferentes falas são também objeto de estudo e reforçam a competência do aluno na medida em que fornece a ele possibilidades diversas de se comunicar conforme a ocasião e, ainda, conforme o objetivo.
Valorizar as variações linguísticas e levá-las para sala de aula na qualidade de objeto legítimo de análise no processo de ensino-aprendizagem faz com que o aluno se sinta pertencente àquele grupo e reconheça a língua portuguesa como sua língua nativa, pois agora ele entende o valor que tem e que a lógica de hierarquização da língua é ínfima e insensata.
Em contrapartida ao que propõe a escola tradicional, a pedagogia progressista é preocupada com o sujeito e com a construção de conhecimentos válidos e contextualizados de modo a garantir a aprendizagem e preparar um sujeito competente, autônomo, reflexivo e criativo.
Conclusão
É evidente a urgente necessidade de repensar a forma com a qual a Língua Portuguesa é ensinada nas escolas, de modo a atender, sobretudo, às postulações de uma educação progressista e humanizada, a qual pretende preparar o educando para o exercício de sua cidadania plena reconhecendo-se como falante nativo da língua portuguesa e apto a utilizá-la conforme o contexto social solicitado.
Em função disso, promover um ensino em que a base esteja ligada ao diálogo e às proposições vinculadas ao contexto social é importante na medida em que ele, de certo modo, é capaz de envolver seus alunos de forma significativa e atraente e, portanto, tem chances reais de preparar o aluno para exercer de fato a sua cidadania.
A escola deve assumir seu compromisso com seus alunos e com a comunidade escolar a fim de dar-lhes condições de atuar de maneira significativa em suas comunidades, desvencilhando-se das ideias postuladas pela pedagogia tradicional, que limita seu alunado, vendo-o como objeto.
A língua portuguesa é a língua materna dos cidadãos brasileiros e, portanto, devemos a reconhecer como tal. A escola precisa reorientar sua dinâmica frente ao ensino da Língua Portuguesa na intenção de promover a valorização e a legitimação das mais diferentes formas como a língua se apresenta, reconhecendo, sobretudo, as variações da comunidade local.
Isso faz com que o aluno reconheça a língua portuguesa para além do que é exposto pelas regras gramaticais e a compreenda como elemento vivo. Sendo assim, será capaz, também, de adequar a língua aos mais variados espaços e instituições sociais.
Referências
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Publicado em 21 de junho de 2022
Como citar este artigo (ABNT)
OLIVEIRA, Charles Silva de. O ensino dialógico da Língua Portuguesa nos primeiros anos do Ensino Fundamental. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 22, nº 23, 21 de junho de 2022. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/22/23/o-ensino-dialogico-da-lingua-portuguesa-nos-primeiros-anos-do-ensino-fundamental
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