Os desafios da Educação Básica na sociologia de Florestan Fernandes: estrutura social, conservadorismo e humanismo

Elson dos Santos Gomes Junior

Cientista social, mestre e doutorando em Sociologia Política (UENF), professor EBTT de Sociologia no IFF

Florestan Fernandes (1920-1995) é um dos grandes expoentes das Ciências Humanas no Brasil e na América Latina, sendo reconhecido por trabalhos em diversas áreas, como Antropologia, Sociologia, Ciência Política e História. Além delas, desenvolveu importante contribuição no campo educacional, sendo reconhecido como um dos representantes do pensamento pedagógico brasileiro (Oliveira, 2010; Mazza, 2003).

A partir da década de 1960, esteve alinhado com a questão da cientificidade das Ciências Sociais brasileiras e dedicou parte de suas reflexões educacionais ao estabelecimento de uma Sociologia metodologicamente rigorosa (Fernandes, 1980), tendo como objetivo a possibilidade de contribuir para o desenvolvimento de campos diversos de maneira “aplicada” (Fernandes, 1971).

Até então, com raras exceções – como o trabalho a respeito do “ensino de Sociologia na escola secundária brasileira” (Fernandes, 1958), Florestan não havia dedicado esforço analítico endereçado à Educação Básica. Contudo, a partir das movimentações conservadoras em busca da hegemonia pelo direcionamento educacional quando da elaboração da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, publicada em 1961 (Leher, 2012), e, principalmente, do recrudescimento democrático que culminou com o golpe civil-militar de 1964, a questão educacional passou a permear as análises do sociólogo paulista e a expressar o tipo intelectual que o influenciou pelo contato com a obra de Karl Mannheim (Mazucato, 2014), ou seja, o tipo associado ao movimento histórico-social.

Foi assim – por sua presença em manifestações, greves e sindicatos de professores – que Florestan Fernandes publicou sua primeira obra de cunho estritamente educacional (Fernandes, 1966) e que, apesar de não se deter estritamente ao ensino secundário, dedicou a ele fração importante de seu estudo sobre “educação e sociedade no Brasil”. Com ela, inaugurou uma perspectiva professoral que em parte ficou conhecida como “militante” (Ianni, 2011) e que marcou sua forma de pensar a Educação pela lógica indissociável reflexão-ação-reflexão.

Este trabalho tem por objetivo a apresentação da análise da Educação Básica no Brasil a partir da Sociologia de Florestan Fernandes tomando seus estudos como importantes e atuais contributos para e entendimento de seu funcionamento. Para isso, entende-se a dimensão crítica de sua Sociologia como fundamental para evidenciar a insuficiência de perspectivas conservantistas que naturalizam os problemas educacionais, principalmente mediante uma insustentável ideologia do mérito. Para isso propomos como percurso explicativo: (I) a relação entre estrutura social e educação; (II) a crítica à perspectiva educacional conservadora e sua tendência à naturalização das desigualdades; por último, (III) a proposta humanista como principal desafio educacional no Brasil para Florestan.

Esta análise, em termos teóricos, situa a Sociologia da Educação de Florestan Fernandes como importante contribuição no campo de estudos da teoria crítica (Adorno, 1995; Adorno; Horkheimer, 1991) e nos estudos educacionais que privilegiam a chamada formação humana ou Bildung (Menze, 1981; Dalbosco et al, 2019). No primeiro, com a ampliação do horizonte analítico ao demonstrar as diversas amarras históricas que impedem o processo de aprofundamento dos pilares democráticos na educação no Brasil (Fernandes, 1966; 1975; 1984; 1989). No segundo, preencheu uma lacuna nos estudos educacionais e ontológicos brasileiros ao tratar do conceito de “novo homem” como meio de compreender as diversas humanidades e, principalmente, as motivações do não reconhecimento de algumas delas (Vieira; Mormul, 2020; Teodoro; Garcia, 2020).

Procedimentos metodológicos

A metodologia empregada é de cunho qualitativo-bibliográfico e consiste na análise das obras de Florestan Fernandes que tratam exclusivamente do tema Educação (Fernandes, 1966; 1975; 1984; 1989). Pela abrangência de questões trabalhadas, optamos por desenvolver alguns conteúdos pouco estudados, a exemplo de questões como conservadorismo, humanismo e seus efeitos sobre a Educação. Tal abordagem importa para a delimitação de uma Sociologia da Educação Básica na obra de Florestan Fernandes, configurando-se como aprofundamento necessário por meio de uma perspectiva pouco usual no que tange aos estudos da obra desse autor.

Além disso, salientamos que nossa análise – apesar de tangenciar outras obras e temáticas – se deterá com mais afinco nos trabalhos em que a temática da Educação Básica é mais proeminente, ou seja, a primeira obra de Florestan nessa linha (Fernandes, 1966) e a última (Fernandes, 1989). Essa delimitação garante melhor verificabilidade ao que propomos evidenciar de contributos em sua Sociologia da Educação e, assim, maior objetividade e aprofundamento analíticos, principalmente a respeito de sua proposta humanista.

Estrutura social e Educação

A questão da estrutura social está presente na Sociologia de Florestan Fernandes em diversas obras, além das dedicadas exclusivamente à Educação. Ao definir sociedade nos termos do capitalismo, o sociólogo afirma que sua organização “é, também, e acima de tudo, uma complexa realidade sociocultural para cuja formação e evolução histórica concorreram vários fatores extraeconômicos (do Direito e do Estado Nacional à Filosofia, à religião, à ciência e à tecnologia)” (Fernandes, 2008, p. 23).

Nesse sentido, ele defende, de modo geral, que a sociedade brasileira entrou na Modernidade sem competitividade material – econômica – e, por isso, acabou com seus dinamismos prevalecendo na esfera política (Fernandes, 2008). No entanto, esta última mostrou-se historicamente insuficiente para ampliar a participação e a inclusão social no Brasil e, como citado, “a complexa realidade cultural” acabou gerando disparidades que se perpetuam por esferas além da econômica. É, assim, evidenciada uma estrutura social materialmente limitada, com dinamismo na instância política, cujo fim limita-se à apropriação do aparelho de Estado pelas elites.

Em termos educacionais, isso possui especificidades históricas que foram evidenciadas há seis décadas por Florestan em sua primeira obra de cunho educacional (Fernandes, 1966). Nela, ele dedica boa parte de sua atenção à Educação Básica e começa evidenciando uma das principais características dessa instância educacional brasileira: o afunilamento.

Ele revela que as oportunidades educacionais decrescem, progressivamente, ao passarmos do Ensino Primário para o Ensino Médio e Superior. Por isso, o número de estabelecimentos de ensino e o volume do esforço educacional diminuem paralelamente à medida que se considere o ensino primário, que constitui a base do sistema, os seus ramos intermediários com o Ensino Médio e o tope dele com o Ensino Superior. Em consequência, as oportunidades educacionais assumem, em todos os ramos do ensino extra-primário, caráter seletivo predominantemente extraeducacional (Fernandes, 1966, p. 20).

Entre os fatores chamados “extraeducacionais” encontra-se a desigualdade social que, como vimos anteriormente, atende no capitalismo por um conjunto que extrapola a dimensão econômica. Nesse quadro, Florestan antecede a crítica da educação como um “privilégio” ao evidenciar a maciça presença do setor público na educação primária, sem que isso signifique a verticalização proporcional da população pobre, principalmente no que tange ao acesso ao Ensino Superior.

Existe uma estrutura social excludente em termos educacionais que impede que milhares de jovens de camadas pobres concluam o Ensino Médio e, mais ainda, que acessem o Ensino Superior. Como bem afirmou Florestan, essa não é uma questão restrita ao bom desempenho escolar, mas sim a necessidades sociais impostas à população mais vulnerável socioeconomicamente. Essa sociedade extremamente desigual, “em suma, preserva o caráter fundamental de um Ensino Médio de tendência e de pretensões aristocráticas” (Fernandes, 1966, p. 27).

Nesses termos, antes de pensarmos ideias meritocráticas como a de “sucesso escolar”, temos que nos atentar ao fato de que estamos atuando com crianças que não são apenas repelidas da escola, mas sim da própria sociedade e da condição plena de cidadania e de realização de sua condição humana. Por isso, tanto quanto as inovações didáticas, curriculares e pedagógicas de maneira geral, a comunidade escolar na Educação Básica precisa estar pronta para recepcionar crianças severamente pressionadas por demandas que ameaçam seu direito de existir (Fernandes, 1989). Para essa relação entre educação e sociedade, Florestan afirma:

Conviria lembrar aqui algumas ideias gerais, de importância substancial. Como já escrevi algures, “não há dúvida de que a educação modela o homem. Mas é este que determina, socialmente, a extensão das funções sociais construtivas da educação em sua vida”. Existe uma interdependência estrutural e dinâmica entre a educação e a sociedade, em consequência da qual: 1º) a educação forma o homem; 2º) o homem define o valor social da educação. É preciso ter sempre em mira esses dois polos do problema; os estudiosos tendem a dar muita importância ao primeiro, negligenciando mais ou menos o segundo. No entanto, a importância da educação como técnica social e as funções que ela chega a desempenhar na formação da personalidade dependem estreitamente do modo pelo qual os homens entendem socialmente, por causa de suas percepções do mundo e das suas condições de existência, as relações que devem se estabelecer entre a educação e a vida humana (Fernandes, 1966, p. 71).

A ideia de uma sociedade que educa para a vida é marcante em sua Sociologia da Educação (Fernandes, 1989) e nos coloca de prontidão a respeito de caminhos alternativos à ideia hegemônica de desenvolvimento. Como bem evidenciou Bock (1980), o Ocidente nutriu desde a Antiguidade Clássica uma ideia de “progresso” e de “desenvolvimento” que rompeu com a preocupação humanista. Na Modernidade, ao deter-se no econômico, dispensou a necessidade de equilíbrio entre a esfera econômica e as necessidades ontológicas humanas, tão bem evidenciadas na Antropologia Filosófica de Max Scheler (2008).

Para Florestan, a questão da desigualdade social e de sua manifestação através de instituições como a escola acabou aproximando-a “mais das instituições punitivas e carcerárias que do cerne elementar de uma Pedagogia do aprender fazendo” (Fernandes, 1989, p. 22). É, assim, refletindo sobre seu lugar no mundo, que os educandos irão construir conhecimentos que possam ser agregados à vida, entendida, no dizer de Wallerstein (2001), como “efetividade histórica”. Somente assim a educação poderá municiar criticamente os educandos para que possam requerer, na busca pelo protagonismo histórico, uma condição que satisfaça suas necessidades ontológicas, pelo simples fato de que

a distribuição das oportunidades educacionais (e, portanto, a seleção dos talentos) é feita de acordo com a situação de classe das famílias. Os talentos que chegam ao tope, mesmo em uma sociedade capitalista tão “aberta” e “democrática”, devem ter a seu favor certas condições econômicas e culturais herdadas. Sem elas, a competição se tornaria efetivamente igualitária e racional (Fernandes, 1989, p. 69).

Portanto, como não existe uma sociedade “igualitária” e “racional” – termos que são tomados mais como tipos ideais –, a estratificação social afeta diretamente os projetos educacionais em todas as dimensões (pedagógica, curricular, didática, profissional, de reconhecimento etc.); além disso, demonstra que aqueles que se norteiam pela lógica meritocrática estão, na verdade, defendendo uma perspectiva conservadora que nega as dimensões histórica, estrutural e de “herança” que perpetuam as desigualdades socioeconômicas e educacionais (Fernandes, 1989). Por isso, como veremos a seguir, torna-se relevante refletir a respeito da crítica à perspectiva conservadora contida na obra de Florestan Fernandes.

Conservadorismo e educação

O conservadorismo figura entre as grandes correntes políticas da Modernidade e, sem dúvida, não deixou de enriquecer a pluralidade de perspectivas a respeito da organização da vida cívica, das instituições, da economia e, entre outros, da educação. Apesar de defender a não teorização das relações sociais (Bonazzi, 1998; Kinzo, 2001), os escritos conservadores, designados por Honderich (1993) como “conservadorismo reflexivo”, possuem uma agenda ampla que abarca temas seminais para seus adeptos.

Entre estes podemos destacar a aversão a processos revolucionários e a mudanças político-sociais repentinas ou céleres, como a Revolução Francesa (Coutinho, 2014). Também se destaca o apego constitucional como forma de assegurar a manutenção, via sistema jurídico, das relações estabelecidas historicamente e, além disso, a valorização do social como prova maior de existência normativa e, portanto, parecer cabal de qualquer necessidade de mudança.

Assim, em conjunto com os pontos citados, podemos destacar a importância da religião, da liberdade de possuir e concentrar propriedade, a defesa de uma ontologia e, nesse quadro amplo, porém bem conciso de suas reivindicações, uma perspectiva educacional. Esta última, segundo Oakeshott (1980), evidencia a “atitude conservadora” como uma atitude cívica e de defesa de uma proposta de mundo e de conhecimento dele.

Para Florestan (1966), que confrontou o conservadorismo educacional diretamente durante a elaboração da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Brasil, 1961), essa perspectiva é insuficiente para uma sociedade como a brasileira. As desigualdades não são “naturais”, como defendem os conservadores (Burke, 2012; Kirk, 2021; Tocqueville, 2001), mas sim fruto de processos históricos, de lutas e conflitos que, assim, distribuíram os bens sociais que têm sua posse naturalizada pelos conservadores (Coutinho, 2014; Honderich, 1993). Para Florestan,

a conclusão que se pode tirar é que agem assim porque o Estado Democrático está em formação. Se contássemos com um Estado Democrático, a simples consciência cívica dos cidadãos oporia temível barreira ao atrevimento dessas forças retrógradas. Se esta falhasse, os mecanismos inerentes ao funcionamento do Estado Democrático impediriam semelhantes manobras (Fernandes, 1966, p. 384).

Florestan entende que existe relação direta entre a formação social brasileira e os pilares conservadores que, no dizer de Nunes (2004), evidenciam uma “gramática” social que direciona nossas perspectivas e ações. O simples fato de termos um movimento educacional considerado “retrógrado” (Fernandes, 1966) evidencia a relação dialógica e tensa entre sociedade e educação, que, na recente história brasileira, não deve ser vista ou percebida com surpresa.

Florestan mostra que a luta dos conservadores pela hegemonia educacional brasileira não é recente, que o projeto de transferir dinheiro público para o setor privado (e também confessional) da Educação Básica não é novo e que a representatividade dos empresários da educação por meio de financiamento de campanhas de políticos não é, também, nenhuma novidade (Fernandes, 1966).

Para Florestan (2005), o “ultraconservadorismo”, em sua forma ditatorial e de luta pela manutenção do status quo das classes privilegiadas, teve no Brasil seu auge durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Seus efeitos foram visíveis sobre a Educação e evidenciam uma tendência reacionária em momentos em que ela experimenta avanços democratizantes. Por isso, a Educação Básica – e esse é um alerta para toda comunidade escolar e para a sociedade em geral – é um campo sinalizador das tensões político-sociais e dos projetos em disputa, principalmente quando

os que combatiam pela renovação e acreditavam no processo de mudança educacional progressiva viram-se ameaçados por um processo novo de revitalização do mandonismo, do tradicionalismo e do conservantismo. Sob a capa do “planejamento educacional”, da “administração racional” e da “privatização democrática”, assistiu-se a uma pavorosa destruição do sistema oficial de ensino, à introdução de técnicas verticalistas de imposição de decisões e à fascistização dos procedimentos de atribuição e execução dos papéis sociais nas instituições educacionais. Ao mesmo tempo, provocava-se a implosão quantitativa de todo o sistema de ensino para desorientar os educadores, os estudantes e os grupos intelectuais críticos, que poderiam desmascarar o que ocorria (Fernandes, 1989, p. 15).

É nesse sentido que Florestan chama a atenção dos profissionais da Educação, afirmando que eles devem se ver como “proletários intelectuais” e que, dessa forma, devem estar em estado de alerta quanto aos ataques das classes dirigentes direcionadas à educação, principalmente pelo fato de que essas tensões e tentativas de viradas ideológicas e institucionais não ocorrem sem evidências (Fernandes, 1989). A Educação Básica é uma instância social disputada, reveladora de projetos e de propostas, que pode nortear ações que evitem os flagelos conservantistas como os citados pelo autor.

Em uma sociedade em que a principal marca conservantista é o conservadorismo de classe (Fernandes, 2005), ideologias de cunho religioso, moral e ontológico, entre outras, que configuram o escopo político-ideológico conservador (Burke, 2012; Kirk, 2021; Honderich, 1993; Cury, 2010) servem como sinalizadores de movimentações destrutivas para a Educação Básica e, nesse sentido, devem ser tomadas com a maior seriedade em uma perspectiva crítica e com vistas ao que Mészáros (2008) chamou de “para além do capital”.

A Sociologia da Educação de Florestan Fernandes (1966; 1975; 1984; 1989) evidencia que, nas últimas décadas, o Brasil assistiu a viradas ultraconservadoras que, no fundo, usaram ideologias e valores para preservar e privilegiar a dimensão econômica. Assim, os efeitos do conservadorismo sobre a Educação Básica foram, além de “retrógrados”, economicamente intencionais e reveladores dos interesses empresariais que estão por trás do desmonte da educação pública e da desvalorização dos profissionais da Educação.

Nesse âmbito, Florestan apresenta como principal “desafio” (Fernandes, 1989) uma virada educacional, e antecedeu a proposta de superação mercadológica posteriormente apresentada por Mészáros (2008). Apontou, assim, para o “humanismo socialista” como princípio educativo que, como conceito, prioriza a condição humana e o desenvolvimento das necessidades ontológicas em detrimento do econômico, como bem demonstrou Fromm (1976) em trabalho referencial para o tema. Esta é uma das grandes contribuições de Florestan para a educação de modo geral: pensar a formação humana como via imprescindível do desenvolvimento educacional.

Humanismo e Educação: “o desafio educacional”

Em uma sociedade marcada por um ideal de “desenvolvimento” que, em grande parte, desconsidera a importância da condição humana (Mészáros, 2008; Bock, 1980), em termos educacionais o “desafio” não poderia deixar de considerar a inserção do humanismo no tope dos pilares dos projetos de desenvolvimento e, nesse sentido, de educação. A “tragédia” anunciada pela filosofia do dinheiro em Simmel (2013), atualmente, além de reforçar o contraste entre “forma” e “conteúdo”, também acentuou o economicismo como protagonista dos distanciamentos anunciados pelo sociólogo e filósofo alemão.

Por isso, a aquisição de diplomas no mercado educacional – presencial e, principalmente, em algumas modalidades virtuais descomprometidas – está negligenciando descaradamente o que Florestan chamou de “experiência universitária verdadeira” (Fernandes, 1966). A educação transforma as pessoas; no entanto, como já citado, existe uma orientação social que tensiona o processo educativo e o torna uma prática dialogicamente conflituosa.

Contra o formalismo educacional e em nome de uma “experiência verdadeira” (Fernandes, 1966), Florestan acena para uma Educação que possa ter como orientação o humanismo, e seu principal objetivo é a formação do que chamou de “novo homem” (Fernandes, 1989). Essa Educação busca superar as engrenagens impostas pelas estruturas mercadológicas e fetichizantes da educação trágica norteada pela simples ideia de aquisição econômica para, além disso, proporcionar uma educação como experiência histórica.

Ao tratar da Revolução Cubana, Fernandes (1978) sinalizou a respeito do “humanismo socialista” e não se deixou levar pelo utopismo, mas sim salientou que ele não acabaria com a pobreza; contudo, eliminaria a miséria por meio de uma proposta de desenvolvimento que colocaria a vida acima dos interesses econômicos. Nesses termos, não eliminou a necessidade de desenvolvimento econômico ou de sua importância, mas somente, uma virada que agregasse a “humanidade” para uma participação efetiva na história.

Essa perspectiva sócio-histórica e de desenvolvimento humano que permeia a obra de Florestan é comprometida com uma educação crítica que, apesar dos ditames hegemônicos do capital (Fernandes, 1966), não deixa de prezar pela condição humana e pelo pleno desenvolvimento. Por isso, ele defende que as crianças possam se desenvolver sem ter que trabalhar, mas tendo acesso ao lazer, a férias de verdade, a consumir entretenimento e, assim, desfrutar da infância como processo de integração processual, não sendo tragadas prematuramente pelo mundo do trabalho por necessidade de sobrevivência (Fernandes, 1989). Para isso, faz-se necessária uma virada contra as perspectivas hegemônicas de educação e de desenvolvimento como expressas nos trabalhos de Echevarría (1967), Bock (1980), Mészáros (2008) e Wallerstein (2001); entre outros fatores, Florestan afirma que,

hoje, não se trata mais, concretamente, de colocar o cidadão no eixo da reflexão pedagógica transformadora. Atualmente, o que é necessário fazer para dar uma resposta criativa e um apoio decidido à regeneração da sociedade civil, provocada primordialmente pelas classes trabalhadoras em seu movimento orgânico e espontâneo, consiste em tomar como eixo da reflexão e da ação pedagógicas a revolução social que está se desencadeando, a qual põe o operário, o trabalhador agrícola e o homem pobre – em síntese, os oprimidos – como o sujeito principal do processo educativo. O sujeito negado, esquecido e excluído impõe-se, agora, por sua própria presença na sociedade civil e por sua própria força coletiva de classe, como alfa e o ômega da educação. O educador precisa reeducar-se e transformar-se para deixar de ver suas tarefas e as funções da educação sob a ótica das elites econômicas, culturais e políticas dominantes (Fernandes, 1989, p. 17).

Podemos entender que uma das maiores ações em prol de uma sociedade mais plural e de sujeitos empoderados para a luta de suas necessidades é, no histórico cenário educacional que temos descrito neste trabalho, a permanência. Quando aponta o problema do “afunilamento”, Fernandes (1966) tangencia uma relação dialógica necropolítica que, nas últimas décadas, tem invisibilizado pessoas, em sua maioria, das camadas pobres (Fernandes, 1989).

A luta pela permanência deve também ser uma forma de resistência às imposições socioeconômicas, conservadoras e, além disso, uma evidência da necessidade de transformação pedagógica. Segundo Florestan (1989), é preciso uma reeducação dos professores que, nesse sentido, os distancie da lógica mercadológica e dominante que naturaliza e pune a exclusão e a evasão escolar e, por outro lado, glorifica as conquistas daqueles que possuem “herança” e, logo, reforça o discurso insuficiente da meritocracia burguesa.

O desafio educacional é, assim, uma virada de cunho político, pedagógico e curricular que, ao “educar para vida”, analisa-a de forma crítica de modo a considerar alternativas aos caminhos postos pela mercantilização do ensino. Por isso, é com a educação do “homem novo que devemos formar e a humanidade que deve ser o produto do sistema de ensino que teremos de montar, daqui para a frente, se configura em termos da situação de interesses de classes” (Fernandes, 1989, p. 18).

Assistimos diariamente ao descrito por Engels (2010, p. 69) como “assassinato social”; e a escola, como parte integrante e manifesta da sociedade, repele a sua fração “indesejada” em nome de pretensas fórmulas meritocráticas. É contra essa forma conservantista e naturalizada de “matar socialmente” na instância educacional que Florestan, em sua Sociologia da Educação (Fernandes, 1966; 1975; 1984; 1989), nos mune de criticidade para percebermos os valores e ideologias presentes nas escolas, nas propostas de reforma do ensino e em perigosas ideologias que se apresentam como combatentes delas – atualmente podemos citar os movimentos que reivindicam a chamada “escola sem partido” (Frigotto, 2017).

Esses movimentos “reformistas” expressam a mais pura sintonia entre os pilares “retrógrados” da educação (Fernandes, 1989) e o formalismo de “má fé” (Fernandes, 1966), que atua na aparência da igualdade de oportunidades sem, no entanto, salientar os percalços estruturais e excludentes do “afunilamento”. Nesses termos, o “humanismo” educacional necessita se impor como princípio educativo contra a “tragédia” mercadológica moderna, que não consegue “educar para a vida”, mas sim para o mercado e para o consumo.

Existe na Educação humanista uma instância de necessidades (Fernandes, 1978), sendo ela uma chave importante para nortear a educação e suas possibilidades de transformação, em que “educar para a vida” (Fernandes, 1989), mais do que conectar a escola à sociedade é, na verdade, a busca pela efetivação da síntese entre sujeitos e a história. Somente assim os historicamente excluídos poderão experimentar uma Educação com sentido e ingressar em uma lógica “expansiva”, como salientado por Vieira Pinto (1978). Por isso, Florestan aponta que

a nossa escola nunca foi uma comunidade. Por quê? Porque ela sempre absorveu uma estratificação [...]. Essa estratificação precisa ser suprimida. Se o professor é um agente de perpetuação de estruturas sociais dentro da escola, é agente da ordem dentro da escola, então ele é, também, um fator de coerção social, de limitação da mudança, de subalternização do estudante. Quer dizer, ele vai criar estímulos e incentivos para a capitulação passiva, para que aquele que é educado se pense como subalterno e não como igual, não como o oprimido que se liberta, mas como o oprimido que tem um sentimento de gratidão para com a dominação (Fernandes, 1989, p. 248).

Nesse quadro, a virada humanista não deve ser esperada como política pública vinda da comunidade política que historicamente digladia-se pelo poder (Fernandes, 2008), mas sim como iniciativa no próprio seio da comunidade escolar. Por isso, Florestan alerta os professores a respeito de seu alinhamento político-pedagógico de modo a evitar reproduzir estruturas de poder que, no final, aprofundam as forças de exclusão dos mais necessitados em desenvolver autonomia. Com isso, os profissionais da Educação Básica devem ter como contraponto toda e qualquer perspectiva “punitiva e carcerária” (Fernandes.1989), lutando por uma escola “para a vida” que também faça parte de uma reconstrução da sociedade civil que precisa ser civilizada (Fernandes, 2011).

O humanismo socialista como princípio pedagógico é, assim, um princípio educativo do imensurável, que valoriza o econômico mas não se submete a ele, que entende a desigualdade como construção histórica a ser combatida, que entende as diferenças humanas como especificidade e não como forma de legitimar ideologias meritocráticas conservadoras e, além de tudo, presa por uma ideia de trabalho que seja formativa e transformadora daqueles que o empregam, ao contrário de uma necessidade de sobrevivência desumana (Fernandes, 1966; 1978; 1989; 2011).

O humanismo proposto por Florestan para promover qualitativamente a Educação Básica se opõe a toda e qualquer defesa conservadora de uma constituição “morta” (Fernandes, 1989), em que seus preceitos não se concretizam ou, como diz Wallerstein (2001), não ganham “efetividade histórica”. Para alcançar uma escola que supere as estruturas e o ultraconservadorismo de classe, segundo Florestan,

são três os conjuntos de prioridades pedagógicas básicas, que deveriam ser a fonte de normas constitucionais vivas. Primeiro, a Constituição deve garantir a todos igualdade efetiva das oportunidades educacionais, não como “princípio para inglês ver”, mas como norma imperativa e autoaplicável. [...] Segundo, a Constituição deve tomar a si uma orientação firme na formalização de valores que não foram incorporados do exterior com a difusão das instituições escolares. A escola é o principal “laboratório” de uma sociedade civil (isto é, uma sociedade burguesa) civilizadora, pluralista e democrática. [...] Terceiro, é urgente que assumamos o caminho de nossa autoemancipação pedagógica em escala nacional. A Pedagogia do Oprimido e Paulo Freire fornecem um bom exemplo de que somos capazes de uma produção pedagógica apta a transformar o mundo (Fernandes, 1989, p. 133-134).

Esta última citação é bem representativa da proposta humanista de Florestan, que luta por preceitos constitucionais “vivos” e que entende que a existência de uma prática pedagógica só faz sentido se for com o propósito de transformação humana e histórica do mundo (Fernandes, 1989). Esses pilares se apresentam como o grande “desafio” que suplanta os engodos reformistas a que assistimos nas últimas décadas atuando na Educação Básica e sobre seus preceitos pedagógicos, curriculares e políticos.

Considerações finais

Acreditamos que conseguimos tratar da importância de considerar os fatores estratificação social, conservadorismo e humanismo na Sociologia da Educação de Florestan Fernandes. Além disso, evidenciamos que nela existe espaço privilegiado de análise a respeito da Educação Básica e como esses elementos a impactam diretamente.

Assim, essa Sociologia contribui em muito como orientação político-pedagógica com sua dose de criticidade e estabelece uma postura pedagógica diferenciada, ou seja, “humana”. Sua finalidade é a gestação de uma sociedade civil civilizada, educada para valorizar a vida e entender que, se a negligenciarmos, muito daquilo a que nos dedicamos acaba perdendo o sentido – ao menos o sentido alinhado ao humanismo socialista.

Nesse sentido, a Educação Básica é, para a comunidade escolar – profissionais da Educação, educandos, pais, familiares e comunidade –, um desafio que envolve não apenas a construção de uma educação significativa, mas sim, uma autorreconstrução em prol de novos valores que possam nos distanciar da tragédia anunciada por Simmel (2013). Florestan defendeu veementemente que essas mudanças são possíveis; contudo, elas não virão de cima, mas sim da capacidade que teremos de nos refazer e nos propor ao grande “desafio educacional” (Fernandes, 1989): de mudar a escola como percurso para impactar a sociedade civil e o “mundo”.

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Publicado em 16 de janeiro de 2024

Como citar este artigo (ABNT)

GOMES JUNIOR, Elson dos Santos. Os desafios da Educação Básica na sociologia de Florestan Fernandes: estrutura social, conservadorismo e humanismo. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 24, nº 1, 9 de janeiro de 2024. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/24/1/os-desafios-da-educacao-basica-na-sociologia-de-florestan-fernandes-estrutura-social-conservadorismo-e-humanismo

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