Conhecendo a cultura surda e as provocações da inclusão
Héctor Luis Baz Reyes
Doutorando em Educação (Unicamp), professor do IFSP - câmpus Jacareí
Em 2018, no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP – câmpus Jacareí), fomos surpreendidos por uma notícia que nos instigou a reflexões profundas. A chegada de um estudante surdo provocou uma reavaliação das nossas práticas de convivência na escola como espaço de inclusão. Para a maioria dos docentes, lidar com a presença de estudantes surdos em suas salas de aula é uma experiência inédita. Isso nos conduziu a reuniões específicas para discutir vários aspectos relacionados ao tema. Embora as diferenças já estivessem presentes na escola, não as víamos como um desafio pedagógico até então.
Em 2016, durante minha atuação no Instituto Federal de Guarulhos, tive a oportunidade de lecionar para um aluno surdo em um dos cursos do câmpus. Ele frequentava as aulas sempre acompanhado de um intérprete de Libras. Essa experiência revelou-se enriquecedora e proporcionou aprendizados significativos da língua de sinais e, especialmente, da dinâmica complexa envolvendo o estudante surdo, o professor e o intérprete.
A condução de aulas de Língua Portuguesa para alunos surdos, cuja língua materna é a Libras, apresenta desafios notáveis. Para aqueles que, como o aluno em Guarulhos, têm domínio avançado de Libras, a leitura e a escrita em Português se mostram mais acessíveis. No entanto, nos casos em que o domínio de Libras não está plenamente desenvolvido, essa lacuna pode gerar dificuldades em diversas áreas do conhecimento, conforme relatos de colegas intérpretes. Esse cenário evidencia a necessidade de abordagens inclusivas e estratégias específicas para assegurar a plena participação e compreensão do estudante surdo em seus percursos educacionais.
Minhas observações não possuem caráter científico nem se originam de uma pesquisa formal. Tratam-se, na verdade, de reflexões baseadas em experiências pessoais com alunos surdos, em cursos e em diálogos enriquecedores com colegas de diversas disciplinas e pedagogos da Coordenadoria Sociopedagógica (CSP). Essa última, atua diretamente com os estudantes e foi fundamental para a minha compreensão de um aspecto crucial nesse processo: a cultura surda.
É possível verdadeiramente compreender a cultura surda ao conhecer apenas um ou dois alunos surdos? Esses estudantes estão inseridos no que chamamos de “cultura surda”? Se sim, o que exatamente caracteriza essa cultura surda?
Esses questionamentos surgem naturalmente. À primeira vista, poderíamos supor que um indivíduo surdo deve dominar a Língua Brasileira de Sinais (Libras) para integrar-se à cultura surda. No entanto, essa perspectiva não corresponde à realidade de muitos surdos. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde, realizada pelo IBGE, em 2019:
O número de pessoas com dois anos ou mais de idade com deficiência no país era de 17,3 milhões. Quase metade (49,4%) da população com deficiência era idosa. 25,4% da população com deficiência em idade de trabalhar, ou seja, com 14 anos ou mais de idade estava ocupada em 2019. O nível de ocupação é ainda menor na população com deficiência mental: 4,7%. Dentre as pessoas cinco anos ou mais de idade que não conseguiam modo algum ouvir, 35,8% deles sabiam se comunicar em Libras. Esse percentual é de 3% entre aqueles que tinham muita dificuldade para ouvir (IBGE, 2021; grifos meus).
Se a Libras não representa a realidade de muitos surdos, essas pessoas podem fazer parte de uma cultura ou comunidade surda? A resposta é afirmativa. Como destacado por Nídia Limeira de Sá (2006, p. 9), “a cultura surda refere-se aos códigos próprios dos surdos, suas formas de organização, de solidariedade, de linguagem, de juízos de valor, de arte etc. Os surdos envolvidos com a cultura surda autorreferenciam-se como participantes dessa cultura”.
Em muitos contextos, ainda se enfrenta o desafio de alfabetizar estudantes em Libras antes de sua integração às aulas regulares, numa abordagem que suscita questionamentos profundos acerca da inclusão. Contudo, existe uma forte convicção acerca da viabilidade das conquistas que permitem uma comunicação eficaz em Libras e uma interação mais fluida com professores, servidores e intérpretes. No entanto, torna-se inevitável a reflexão a respeito de questões de acessibilidade e o verdadeiro significado da palavra inclusão, conforme observado por Timótheo Machado Henrique:
Até os dias de hoje a Educação Inclusiva segue sem preparo, com poucas adaptações estruturais e prediais, sobrecarregando os chamados profissionais especialistas, pois surge a crença de que eles que foram formados pelo governo, concursados já com a formação exigida e/ou até a buscaram por afinidade com o tema ou por terem familiares com alguma deficiência (Henrique, 2021, p. 2).
Em fevereiro de 2018, enquanto desempenhava o papel de coordenador de curso, recebi um e-mail da CSP, contendo orientações acerca de um estudante que apresentou necessidades específicas e dificuldades em relação à Libras. Esse primeiro contato despertou a atenção da equipe de profissionais para o papel crucial do intérprete em nosso campus, evidenciando a importância de um esforço conjunto para fortalecer a Libras como a única ferramenta viável que permitiria ao estudante participar das aulas regulares com seus colegas e professores.
Nesse momento, percebi a relevância de conhecer o discente, buscando compreender sua realidade e suas percepções em relação à escola. Ciente de que o aluno não era fluente em Libras e reconhecendo minhas limitações na língua, busquei a colaboração da intérprete do campus e da CSP.
Com a notícia do estudante surdo, os diversos setores começaram a agir e os e-mails trouxeram informações teóricas, experiências diversas relacionadas à surdez e às práticas educativas de inclusão. Foram compartilhadas informações a respeito da inclusão de alunos com deficiência, com foco na chegada de estudantes surdos às diferentes instituições e a forma como outros campi têm atuado. Diante desse cenário, enfatizou-se a necessidade de aprimorar nossos conhecimentos e práticas para atender a essa demanda de forma eficiente e acolhedora.
Entre as recomendações, destacou-se a elaboração de um planejamento semanal das aulas, detalhando os conteúdos a serem abordados para facilitar o trabalho do intérprete responsável por auxiliar o aluno. Também foi ressaltada a importância de envolver a equipe pedagógica e a coordenadoria sociopedagógica nesse processo, garantindo uma comunicação clara e contínua.
Além disso, organizaram-se palestras ministradas por especialistas em Libras com o objetivo de ampliar os conhecimentos da língua. A apresentação abordava estratégias de ensino e práticas inclusivas para apoiar os professores na adaptação de suas metodologias, promovendo um ambiente mais acessível. O evento foi aberto a todos os interessados e ofereceu orientações essenciais para lidar com as necessidades específicas dos alunos surdos.
Em poucos dias, fomos inundados com uma quantidade significativa de informações relacionadas à surdez, com um foco especial em estratégias para lidar com as novas realidades. O plano educacional individualizado (PEI) trouxe uma visão aprofundada da complexa realidade da abordagem e ampliou detalhadamente as primeiras percepções dos estudantes. É importante destacar que aspectos e dados confidenciais, como ocorre com qualquer discente, não podem ser divulgados. No entanto, o PEI delineia um plano pedagógico que permite avaliar as habilidades linguísticas em Libras e a Língua Portuguesa, fornecendo informações cruciais para a elaboração de estratégias futuras.
O PEI é um documento resultante da avaliação feita pelo professor em conjunto com o Núcleo de Apoio às Pessoas com Necessidades Educacionais Específicas (NAPNE) e a CSP para identificar necessidades, conhecimentos prévios, potencialidades e habilidades de alunos com deficiências, transtornos globais de desenvolvimento, altas habilidades ou superdotação e dificuldades de aprendizagem. O objetivo principal é reconhecer a singularidade de cada aluno, proporcionando estratégias adequadas para seu aprendizado no Ensino Regular, de acordo com as características individuais.
A aprovação do PEI requer a concordância do estudante ou responsável. No caso de menores de idade, sua revisão periódica permite ao professor ajustar estratégias com base nas observações em sala de aula e na interação do aluno com a comunidade escolar. Em conformidade com a Instrução Normativa PRE/IFSP nº 001, de 20 de março de 2017, o PEI abrange informações gerais do estudante, sugestões de encaminhamentos e um programa pedagógico.
É crucial ressaltar o dedicado esforço das tradutoras e intérpretes de Língua de Sinais – Língua Portuguesa (TILSP) e da equipe envolvida. Esse empenho é resumido de maneira abrangente em um minucioso portfólio que documenta o processo de aprendizagem ocorrido durante o AEE, realizado de março a julho de 2018. O portfólio abrange detalhes de atividades, intervenções, orientações e desenvolvimento, com a colaboração efetiva da equipe composta pelo NAPNE, CSP, direção, coordenação e docentes do curso.
Lucykênia Lima da Silva destaca a relevância de superar as barreiras que resultam nas principais limitações para os surdos, como a primeira atitude a ser considerada no ambiente escolar:
Da mesma forma, as barreiras sociais, que geram a deficiência do surdo em decorrência de atitudes e interações com o meio, estão sendo alteradas, de forma a se alcançar uma participação com equidade, adequando as políticas educacionais de ensino ao desenvolvimento de uma vida social plena onde a população surda receba apoio, possibilitando uma comunicação eficaz e um bom desempenho em uma sociedade inclusiva. Dessa maneira, a inclusão da comunidade surda deve ser permeada por pesquisas em que a aprendizagem deve desenvolver aptidões para desempenhar tarefas em que a qualificação requer algumas competências gerais e específicas que poderão ser adquiridas no ambiente educacional (Silva, 2022, p. 3).
Transformar barreiras sociais que contribuem para a deficiência do surdo é um dos maiores desafios. O apoio e a comunicação eficaz para que a população surda possa se integrar plenamente à sociedade requer pesquisa e aprendizagem no desenvolvimento de competências específicas e gerais, essenciais para a qualificação e a participação ativa no ambiente educacional e social.
No câmpus, a equipe dedicou-se à estruturação de atividades com o objetivo de oferecer apoio essencial para o desenvolvimento de aspectos relacionados à socialização, ao aprimoramento dos sinais e à prática da escrita em português. Essas atividades de alfabetização delinearam o caminho que os projetos subsequentes seguiram, desempenhando um papel fundamental na compreensão das estratégias pedagógicas necessárias ao processo.
Desse modo, destacam-se a montagem de artigos em painel, a escrita do português com a Libras (incluindo sinalização de verbos e orações, intervenção na construção gramatical Português/Libras, formação de orações em Português), videoaulas para ampliar o vocabulário em Português (com registro de palavras a partir de imagens e a análise das diferenças entre L2/L1 – Português/Libras), estudo linguístico com reconhecimento de elementos da narrativa (tempo) e sequenciação de imagens e o aprimoramento do vocabulário.
No relatório conclusivo (Rosa, 2018) fornecido pelas servidoras é possível encontrar uma análise abrangente do processo. Optamos por compartilhar apenas alguns trechos, preservando a privacidade dos estudantes envolvidos:
Atendimento educacional especializado
Português
Índice de Desenvolvimento Real (...)
Como planejamos o desenvolvimento?
• Enfatização em conteúdos de leitura e escrita sinalizadas que abrangessem (...) em uma evolução de descobertas e interações com o meio linguístico libras (L1) e Português (L2);
• Incorporação de novas expressões para ampliar o repertório linguístico;
• Ampliação de vocabulário L1 para L2 (vide portfólio);
• Promoção a interpretação de conteúdos por meio de ilustrações.
Chegamos a:
• Verificamos o desenvolvimento (...) em Português pelo significado que (...) passou a criar para o aprendizado. Uma vez que a interação social (...) intensificava as competências e habilidades em libras (L1) e não em Português (L2), desenvolvemos situações de aprendizagem que potencializávamos a L1, ampliando o vocabulário de sinalização e conceituávamos as palavras. Apesar de identificar muitos sinais trabalhados, ainda não os reconhece no Português escrito, pois não diferencia maiúsculo de minúsculo, muito menos os segmentos sonoros da escrita e sua relação com o contexto gráfico do registro.
Obs.: (...) não faz leitura labial e pronuncia algumas palavras, mesmo com fonemas suprimidos.
Índice de Desenvolvimento Potencial para:
• Associar palavra/sinal - L2/L1.
• Diferenciar a modalidade escrita da L2 para a sinalizada L1;
• Discriminar visualmente a escrita dos grafemas, desde que, indagadas significativamente;
• Praticar a escrita de próprio punho, utilizando o conhecimento de que dispõe até mesmo acerca do sistema alfabético da L2, visto que a leitura antecede o processo da escrita e apresenta diferenças entre o sistema alfabético e ortográfico;
. Realizar atividades de busca em textos familiarizados.
Figura 1: Registros no Portfólio
A interação informal com os estudantes surdos proporcionou-me uma visão mais profunda da cultura surda, com uma compreensão básica de Libras e, sobretudo, me revelou a complexidade da comunicação para eles na ausência de intérpretes. Durante meu período no campus Guarulhos, um aluno surdo participava ativamente das aulas de comunicação, contudo ele era alfabetizado em Língua Portuguesa, o que facilitava a nossa interação.
Independentemente das habilidades em Libras, conhecer os estudantes surdos enriqueceu o trabalho, desenvolvendo outras habilidades ligadas ao afeto, às narrativas de um mundo prático e aos desejos de jovens que se conectam com o conhecimento por meio de olhares cúmplices, risadas e até mesmo da competitividade em algumas práticas escolares.
A reflexão acerca da alfabetização em Língua Portuguesa escrita para alunos surdos e aliada às demandas de docentes que reconheciam a importância dessa formação, abriu caminho para um projeto. Essa iniciativa, embora experimental e com a plena consciência de meus limites, tornou-se possível graças à motivação da CSP e dos colegas do curso de Pedagogia. A concepção dessa ideia também emergiu de uma necessidade que, naquele momento, se mostrava significativa: conhecer mais profundamente o estudante surdo, apesar das dificuldades linguísticas que ambos enfrentávamos. Como ressalta José Contreras:
O que está em jogo em qualquer de nossas tarefas de ensino é o sentido que adquire aquilo que fazemos para nossos estudantes; porém, o sentido, necessariamente, remete a uma variedade de sentidos. Variedade, porque o sentido é sempre particular, pessoal e, portanto, varia de pessoa para pessoa. Cada estudante confere um significado à sua experiência, um significado que depende da relação pessoal que cada um elabora com essa experiência. Dessa forma, depende das formas como conecta sua trajetória de saberes e vivências com a rede de compreensões que elabora, interpreta e fixa significados; das suas formas de viver a escolaridade, as perspectivas e as expectativas com as quais vive; das suas disposições e sensibilidade para captar, entender e se relacionar com o ambiente em que vive, da sua forma de ser e estar no mundo (Contreras, 2009, p. 91).
O projeto foi apresentado à Pró-Reitoria de Extensão como atividade em projeto de extensão e fluxo contínuo, edital nº 280 (2019).
Resumo
O projeto "Alfabetização de alunos surdos em Língua Portuguesa escrita" surge como resposta a uma necessidade institucional, derivada de discussões relacionadas ao ensino da Língua Portuguesa como segunda língua no contexto teórico-prático do ensino-aprendizagem. Buscando fortalecer o ensino da Língua Portuguesa escrita, o projeto concentra-se na alfabetização de alunos surdos matriculados no curso de (...), integrado ao Ensino Médio. A experiência inicial de alfabetização visa estabelecer e consolidar uma equipe multidisciplinar composta por pedagogos, intérpretes de Libras e professores de Língua Portuguesa.
Justificativa
A experiência institucional, com alunos surdos - nos anos de 2018 e 2019 - evidenciou a importância de uma iniciativa de alfabetização em Língua Portuguesa escrita como meio de ampliar seus conhecimentos na segunda língua. Tal abordagem se revela crucial no processo de inclusão, especialmente em uma instituição não bilíngue, onde a Língua Portuguesa é a língua materna da comunidade escolar. Os educadores dos alunos surdos percebem que o domínio da Língua Portuguesa escrita possibilitará maior integração com os conteúdos ministrados em suas aulas, acesso aos materiais didáticos e uma inclusão institucional e social mais efetiva. O início do projeto enfrentou algumas dificuldades relacionadas ao tempo e à disponibilidade da equipe de trabalho. Essas profissionais já estavam envolvidas em pesquisas, atividades de alfabetização em Língua Portuguesa, além de oferecerem suporte aos docentes, entre diversas outras responsabilidades inerentes à CSP e ao NAPNE.
Em 2019, após diversos processos e tentativas de engajamento com os alunos surdos, tomei conhecimento de que uma colega professora estava implementando um projeto de alfabetização junto aos estudantes surdos, conduzindo atividades na sala do NAPNE. O propósito fundamental do projeto era oferecer suporte aos alunos surdos no processo de familiarização com a Língua Portuguesa como segunda língua. A professora, reconhecida publicamente por sua proficiência em Libras, demonstrou uma característica essencial para conduzir exercícios com independência e domínio pleno dos desafios. Nesse contexto, participei de algumas reuniões e registrei observações valiosas acerca do desenvolvimento do trabalho.
Figura 2: Trabalho realizado pela professora
Durante a pandemia da covid-19
Ao darmos início às atividades escolares de forma remota durante a pandemia da covid-19, as principais preocupações nas reuniões prévias no início das aulas giravam em torno do planejamento e da logística das intervenções virtuais para os alunos surdos. A experiência com eventos remotos, envolvendo intérpretes, era mínima em comparação à dinâmica de aulas remotas diárias, uma circunstância que demandava uma equipe de trabalho específica e uma interação constante com todos os servidores.
Em meio a esse contexto virtual, para que uma aula de 50 minutos pudesse ocorrer de forma “adequada”, foi necessário limitar a participação dos estudantes surdos, uma situação que não consideramos ideal, mas que se mostrava impossível de modificar naquele momento específico. Nas aulas, contávamos com a presença de dois intérpretes e o professor da disciplina. A utilização do ambiente virtual e dos recursos tecnológicos da internet permitiram e facilitaram o uso de imagens e aplicativos.
Para compreender nossa situação, os estudantes surdos responderam a algumas perguntas relacionadas à Língua Portuguesa e à Libras, gravando seus depoimentos em vídeos. Posteriormente, ocorreu um diálogo em uma aula subsequente, contando com a colaboração indispensável dos intérpretes.
Questionário (diagnóstico) e aspectos metodológicos
- Quais são os principais desafios que você enfrenta ao ler palavras em Português?
- Você consegue recordar todas as letras do alfabeto em Língua Portuguesa e os sinais correspondentes (datilologia) em Libras? Existem letras que lhe causam confusão ou que não consegue recordar?
- Na sua opinião, qual é a importância de ler e escrever em Língua Portuguesa?
- Conhece algum surdo que tem grande facilidade em ler e escrever em Língua Portuguesa?
- Elabore uma lista de 10 palavras em Português que você sempre reconhece quando lê e consegue escrever rapidamente.
- É possível para você ler frases completas em Língua Portuguesa? Se sim, por favor, escreva algumas dessas frases.
De forma resumida e com transcrição literal da intérprete de Libras, as respostas foram:
- A gente tem dificuldades, porque a forma como se organizam as frases é diferente;
- é importante associar o sinal à palavra, para isso a datilologia é importante;
- eu consigo escrever algumas palavras, por exemplo: moto, casa, carro, cachorro, bolo, bola e bala; essas palavras são fáceis de lembrar, porque são breves;
- o computador ajuda muito, porque ele dá sugestões sobre as palavras;
- a datilologia é fácil, o difícil é memorizar essa datilologia e registrar;
- eu lembro do sinal, mas quando vou escrever a palavra eu não lembro da letra que tenho que colocar;
- as palavras maiores eu tenho mais dificuldade;
- organizar a escrita das palavras é difícil, melhor é o Powerpoint que tem imagens;
- para memorizar as palavras é melhor com imagens;
- quando você escreve essa palavra que finaliza com “O” indica masculino e singular, o “S” é plural;
- é fácil assimilar a letra em Português com a datilologia em Libras, mas quando vou escrever, confundo as letras quando escrevo a palavra;
- às vezes, eu troco e a pessoa necessita escrever de novo para poder identificar cada letra na palavra;
- (O estudante confunde a palavra “fada” que foi escrita no chat do AVA - já estudada nos contos - com a palavra “luva”);
- sei que é muito importante aprender a escrever, eu faço um esforço muito grande, mas não consigo, é difícil;
- (O estudante escreve uma frase em Português e explica seu significado em Libras, com algumas dificuldades).
Como estratégia para otimizar as aulas de Língua Portuguesa e manter o projeto de alfabetização, optei por alinhar os conteúdos à mesma abordagem adotada pela colega professora. Desenvolvi técnicas para a identificação das letras do alfabeto, leitura de palavras e representação em Libras, entre outros exercícios. Utilizei a narrativa literária como ponto de partida, mais especificamente os contos de fadas. Esses contos, além de fazerem parte de uma das minhas áreas de pesquisa, oferecem uma riqueza considerável de imagens, arquétipos e referências transcendentais em diversas línguas, faixas etárias e gêneros.
O primeiro conto abordado foi “Rapunzel”, disponibilizado online com interpretação em Libras, legendas em Português e áudio em Português. A primeira atividade consistiu na identificação das personagens principais e secundárias, do enredo e na coleta de opiniões sobre os temas revelados na história. Esse exercício possibilitou entender como os estudantes percebem a noção de protagonista e personagens secundárias na ficção, permitindo a realização de uma descrição interna e externa das personagens. Além disso, foram abordadas palavras-chave relacionadas ao enredo, como: personagens, protagonista, antagonista, o bem, o mal, mulher, homem, mãe, príncipe, magia, entre outras. Assim como lugares importantes, como: um castelo, um quarto, o bosque, entre outros.
A etapa subsequente da atividade envolveu a comparação entre duas obras, “Rapunzel” e “A Bela e a Fera”. Essa abordagem visava estimular ativamente a prática da escrita e dos sinais em Libras, começando pela representação das personagens. Os estudantes foram desafiados a assumir um papel ativo, demonstrando como interpretar uma personagem fictícia e utilizando como base a sua própria descrição.
No caso de “Rapunzel”, a associação da história com o filme Tangled (Enrolados) foi inevitável.
Identificação das personagens e reconhecimento de palavras
Figura 3: Trabalho realizado pelos estudantes surdos (Microsoft Teams)
Produção de texto
A atividade propõe a criação de contos breves, envolvendo os estudantes na construção de narrativas simples. Inicialmente, os alunos são incentivados a selecionar ou a criar personagens, seguidos pela elaboração de descrições detalhadas para enriquecer suas características. A etapa seguinte envolve a definição do conflito central, ponto crucial para impulsionar a trama. Os alunos são desafiados a desenvolver uma sequência lógica de eventos, culminando no clímax e no desfecho. A atividade visa não apenas aprimorar habilidades de escrita, mas também estimular a criatividade e a expressão individual, proporcionando uma experiência de aprendizado dinâmica a partir das ideias dos estudantes.
Figura 4: Exemplo sugerido pelos estudantes surdos (Microsoft Teams)
Durante as aulas foram comentadas algumas lendas e fábulas, assim como relatos que trouxeram temas relacionados à moral e que originaram debates.
Avaliações e resultados parciais
Os resultados deste relato indicam avanços expressivos por parte dos alunos surdos envolvidos nas aulas de alfabetização em Língua Portuguesa. Durante o processo, notou-se progresso na escrita oriundo de contos e a consolidação de estruturas gramaticais. Houve a assimilação de vocabulário específico, englobando personagens principais, secundárias, cenários e objetos. A integração de novos sinais de Libras, relacionados às ações e aos verbos enriqueceu ainda mais o repertório linguístico dos alunos.
Os estudantes não se restringiram à mera reprodução de histórias conhecidas, mas exploraram sua criatividade ao inventar narrativas inéditas em diversos gêneros. A socialização desempenhou um papel crucial nessa experiência, proporcionando um ambiente enriquecedor que favoreceu a expressão linguística e cultural. A utilização de imagens como meio de representação fortaleceu o aprendizado, tornando-o mais envolvente e acessível aos participantes.
Essa experiência positiva foi avaliada por meio de atividades subjetivas, revelando melhorias substanciais na comunicação em Língua Portuguesa escrita. Ademais, o papel essencial desempenhado pelos intérpretes de Libras contribuiu expressivamente para o enriquecimento linguístico e cultural de todos os envolvidos, ressaltando a importância da inclusão e da diversidade no contexto educacional.
Algumas considerações
Por que realizar um relato de experiências com alunos surdos em vez de optar por realizar uma pesquisa formal na forma de um artigo científico? Primeiramente, acredito que este relato proporciona uma oportunidade de compartilhar minhas próprias inquietações, equívocos e acertos no processo de aprendizagem acerca da cultura surda. Não seria apropriado, em minha visão, conduzir levantamentos com dados impessoais e aparentemente objetivos, quando minha experiência foi tão rica e subjetiva, resultando em transformações expressivas em muitas pessoas e nos sensibilizando, de maneira verdadeiramente crucial, a respeito da surdez e de outras deficiências.
Por esses e outros motivos, escolhi um gênero em primeira pessoa, incorporando elementos autoetnográficos que ampliam nossa visão de mundo, reconhecendo o trabalho com pessoas em vez de meros dados estatísticos. Tinha diante de mim uma pessoa com uma história de vida, uma deficiência e uma perspectiva singular de compreender e explorar o mundo, assim como um grupo de profissionais que precisavam se adaptar e construir novos significados teóricos que, anteriormente, faziam sentido apenas nos livros e no mundo ideal.
A experiência com os estudantes surdos ampliou consideravelmente minha compreensão da cultura surda e dos desafios que nosso campus enfrenta no processo de inclusão. Torna-se evidente a complexidade de acolher estudantes em um ambiente originalmente pensado para ouvintes, com um currículo centrado na Língua Portuguesa, sem priorizar as necessidades do público surdo não alfabetizado em LP, seja como segunda língua ou língua adicional.
Após testemunhar o árduo esforço dos colegas servidores e familiares, envolvendo horas de planejamento, projetos e discussões, reflito acerca do caminho a percorrer para alcançar uma educação inclusiva verdadeiramente abrangente. É fundamental reconhecer e valorizar o trabalho dos intérpretes de Libras e dos servidores da CAE, CSP e coordenação de cursos, muitas vezes atuando em diferentes setores e áreas com inúmeras responsabilidades.
Considero imperativa uma formação abrangente para todos os servidores que assumem a responsabilidade de educar estudantes sem as ferramentas adequadas para a criação de planos ou sequências didáticas apropriadas para os surdos. Não basta apenas ensinar Libras. É necessário um conhecimento aprofundado da história da surdez no Brasil, a legislação que regula os direitos das pessoas surdas, os impactos na comunidade educacional, a interação com as famílias, os desafios de acessibilidade e a capacitação de profissionais como intérpretes de Libras, entre outros. Além disso, não se resume à formação, mas é crucial demandar políticas públicas que promovam ambientes inclusivos e responsáveis que abordam os desafios enfrentados pelas pessoas com necessidades específicas, garantindo-lhes o direito à dignidade.
Existe uma clara carência em nosso sistema educativo que, ao exigir o cumprimento das leis de inclusão, muitas vezes negligencia os conflitos que essa "inclusão" incipiente demanda. Por fim, sinto-me orgulhoso pelo trabalho incansável dos meus colegas e pela dedicação do NAPNE, núcleo que debate de forma incessante as condições de trabalho e a segurança de servidores e alunos. Esse processo intrincado e demorado exige muitos cuidados, revelando-se herdeiro de uma história marcada por desafios e negligência em relação à surdez no país.
Referências
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VILLENEUVE, G-S. B. de. A Bela e a Fera. Trad. Maria de Lourdes Campos. São Paulo: Abril, 2000.
Publicado em 16 de abril de 2025
Como citar este artigo (ABNT)
REYES, Héctor Luis Baz. Conhecendo a cultura surda e as provocações da inclusão. Revista Educação Pública, Rio de Janeiro, v. 25, nº 14, 16 de abril de 2025. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/25/14/conhecendo-a-cultura-surda-e-as-provocacoes-da-inclusao
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